Estas são histórias narradas no livro "A vida nos FF", a primeira às pag. 115, e a segunda às pag. 130, com as palavras, grafia, erros e estilo dos narradores naquela época. Os títulos não são da obra original, sendo usados, apenas, para ajuda a sua recuperação.


O FUNDO POR TESTEMUNHA!

O dia despontára tristonho e o sol, que apenas medrosamente rasgára o céo, tangenciára de mansinho os picos das montanhas que fecham os horizontes para as bandas do levante.

Raros cumulos e profuzos nimbus vagueavam de sul para norte, e o rendilhado branco da espuma das vagas. agitadas pelo vento, acariciava serpenteante o dorso do submarino "F 5", prestes a mergulhar.

Com uma dessas presciencias mysteriosas que dão a intuição da proximidade do perigo, a alma se sentia confranger, e sob a impressão de inexplicavel desanimo, a vontade e a noção do dever impulsionavam a materia, dominando o pensamento.

Tudo prompto. A guarnição a postos. Navio fechado. Redondeza safa; apenas distante algumas dezenas de metros, a lancha escolta, em cujo mastro já fôra içada a bandeira vermelha, indicativa de submarino em exercício, aguardava o momento de cumprir sua missão de guarda.

Todos confiantes em si proprios e em seu commandante. A guarnição era "trenada" e o commandante, nas imersões anteriores, já se revelára calmo, preciso e competente.

O submarino não é um navio para experiencias. Elle exige, a par de certas qualidades, raciocínio prompto e segurança de manobra, alliados a uma tecnica perfeita. Cada homem deve ter conhecimento exacto da funcção que desempenha. A confiança mutua é um dos factores de sucesso. As hesitações e os enganos de manobra não têm as consequencias innocentes que se observam nos outros typos de navios, porque as mais das vezes occasionam perdas irreparaveis.

O mecanico, não obstante haver recebido de minhas mãos a papeleta das aguas de compasso do navio, confundira-se no alagamento dos tanques installados na prôa e a sobrecarregára com peso exagerado.

Pela ultima vez, os periscopios gyraram de 360°, devassando o horizonte...

Silencio supulchral. No submarino, prestés a mergulhar, os ruídos exteriores se avolumam e se intensificam, e assim, as ondas que o varriam, como si elle fôra um pontão abandonado, davam impressão de que lá fóra o mar se encapelára.

Vozes reboam pausadamente atravéz os compartimentos enfileirados de extremo a extremo:

Prôa .. .. .. .. .. .. Promto

Pôpa.. .. .. .. .. .. Promto

Torreão .. .. .. .. .. Fechado

São tres perguntas com a mesma entonação de mando (é a voz do commandante), ás quais correspondem as tres respostas com tonalidades differentes entre si.

A imersão era dynamica. O navio já se deslocára para vante sob a acção dos seus motores eletricos e o regougar da agua que penetrava nos fundos duplos, em concerto estranho com o sybillar do ar que se escapava pelo valvulão, fazia comprehender que a imersão se effectuava.

O ponteiro do manometro de profundidade iniciou o seu trabalho e a voz. do mestre, que se encontrava na roda dos lemes horizontaes, começou a quebrar a monotonia do silencio: Profundidade... 1 metro... 2 metros... inclinação... 5° para vante... 3 metros... leme... 10° para cima e a inclinação augmenta ................... 5 metros, 6 metros, 7, 8, todo o leme para cima, inclinação 12° (não havia mais cadencia no enunciado das indicações) . . . e o navio descia sempre. . .

Já se perdêra a visibilidade, uma vez que os periscopios haviam mergulhado e o commandante iniciára a manobra de horizontalizar o navio, passando agua para ré.

A movimentação dos homens não era possível, dada a inclinação exaggerada, e todos se apoiavam naquillo que lhes garantisse segurança.

Insensível á manobra, a nada obedecendo, o navio continuou a descer rapidamente O ponteiro accusou successivamente 9, 10, 11 . . . . . . . . . . . 16 metros, ao passo que a inclinação, passando violentamente por todos os grãos do sector indicativo do pendulo, ultrapassou de 24. Os motores haviam sido parados e já fôra mandado ar aos fundos duplos; mas, com a rapidez da descida para o abysmo, a acção do ar não poude vencer a gravidade.

De repente, a brutalidade do choque e as consequencias immediatas da inercia: homens sobre homens, e homens sobre anteparas e volantes. O navio batêra no fundo...

Afflicto, corro á prôa e inspecciono tudo, até as costuras das chapas. Felizmente, não entra, agua; o compartimento de torpedos continúa estanque.

E os accumuladores electricos ? Teriam extravasado? Verifiquei-os com rapidez prompto a evitar a producção de chloro. O chloro seria o envenamento e a ideia da morte, numa das suas modalidades mais crueis, apareceu instantaneamente. Pensei na Família e estremeci pelos filhos.

Adiante, porem; foi um lampejo de emoção.

Passou. O momento exige decisão. Para felicidade nossa., máo grado o derramamento de electrolyto, não ha producçâo de chloro.

Escalando, á força, a rampa, amparando-me ás canalisações, ás valvulas, ás anteparas e aos proprios companheiros dispersos em attitudes tragi-comicas, regresso ao, compartimento de manobra e faço a communicação ao commandante; este olha para o manometro, cujo ponteiro lá continuava parado nos 18 metros.

Acompanhei-lhe o olhar e involuntariamente estremeci... e estremeci, porque tinha certeza de que, a não sermos salvos por nós proprios, o nosso navio se transformaria em tumulo em plena Guanabara... no coração do Brasil... na séde da Marinha.

No piano geral, permaneciam abertas duas valvulas de grupos de ar e a valvula mestra, e por isso, o ar comprimido, vibrando atravez das canalisações que vibravam, parecia rugir raivozo no interior dos tanques, expulsando agua, que em borbotões lançava-se para o exterior atravez dos kingstons escancarados.

A prôa do navio enterrára-se na lama, e essa lama, de consistencia pegajosa, retinha o submarino afocinhada em seu seio, como uma presa que lhe pertencesse.

Tudo o que se passou foi extremamente rapido, mas não tanto que pudesse impedir que, pela nossa imaginação, perpassassem as sombras fagueiras da nossa existencia e por certo, no mais recondito de nossos sentimentos, suffocámos em silencio os brados de nossa agonia.

Finalmente, o submarino estremeceu e, violentamente, como se fôsse solicitado por força poderosa que houvesse descido do céo ao apello de almas cheias de fé, soltou-se retornando á superfície com as helices á mostra e a prôa mergulhada.

Depois, quando retomou a sua posição normal, poude-se observar, a dois terços dos tubos de torpedos, a facha pardacenta da lama que o reteve.

A contra bordo, atracou a lancha escolta e nella, em attitude ainda atordoada, mudos e inquisidores, apareceram os homens que haviam assistido como testemunhas impotentes ao desapparecimento do navio e ao espectaculo inédito dos borbotões da agua. revolta pelo ar, desabrochando-se em flôres alvinitentes na superfície do mar.

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Como tudo na vida, o que passou, esbate-se na tela distante que a nossa phantasia engendrou, e as suas côres, ainda que as mais intensas, se esmaecem para se transformar em inexpressiva sombra, enquanto o contorno perde sua nitidez para existir mais tarde, apenas, no esforço da imaginação.

E' a Recordação.

E tão bom é o recordar...

Pois não é recordando, que ás vezes se permitte á alma, o reclinar-se sobre si mesma, para cantar de mansinho a prece evocativa de um sentimento?

E não é recordando, que nos é dado sentir, nas mutações variadas dos acontecimentos da vida a existencia das forças imponderaveis da Natureza sob, a denominação de "Força do Destino"?

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É por isso que eu recordo... e é por isso que evocando dentre tudo que me é particulamente grato, os acontecimentos que assignalaram a minha passagem por dois dos tres submarinos que constituíam a Flotilha até 1929, eu revejo, atravéz das impressões que me ficaram, ainda que apagadas, as silhuetas desses navios, dos tres primeiros submarinos que sulcaram os mares do Atlantico Sul Ocidental como symbolos esperançosos e promissores do poderio almejado por nós marinheiros, para a Marinha do Brasil.

Ei-los hoje, retirados da actividade, envelhecidos pelo tempo, gastos pelo uso, prestes ao abandono a espera da sanha demolidora da transformação industrial.

Repleno da mais viva lembrança do passado silencioso e humilde mas brilhante, eu os vereis dentro em breve, despojados de suas guarnições, desprovidos das arrogancias de seus periscopios, mastros rebatidos numa prece de agonia...

Nos quadros que a imaginação fará surgir, aparecerão ante meus olhos semi-cerrados, os traços brancos das esteiras dos torpedos, rendilhando a crista das vagas, em busca do alvo que corre a distancia... e as bandeirolas sanguíneas, triangular, quadrangular e farpada dos "F-1", "F-3" e "F-5", oscilando... oscilando nos topes dos periscopios mergulhados, na ancia de se esconderem sob as aguas, as marcas que diminuirão a contagem de pontos nas provas de Concurso.

E depois . . . os meus olhos se descerrarão para assistirem cheios de emoção e tristeza, ao arriar derradeiro dos tres pavilhões, que pela ultima vez, tremularam orgulhosos da missão que tiveram nos tres submarinos irmãos, berços de dedicação, escrínios de emoções, fontes de inuteis esperanças de uma Marinha grande como a grandeza do Brasil.

Por alguns annos deixará de haver a Flotilha de Submarinos. Restará, entanto, a esperança de uma. nova . . . E elles, pobres coitados que se foram, passarão a existir como symbolos de nossa crença profissional, vivendo na nossa recordação á sombra de nossa grande saudade.

LEONIDA5 MARCOS DA CONCEIÇÃO

                                                                                                          Capitão Tenente


 

O TORPEDO FUJÃO

Parece-nos justo que se tendo fallado em tantos transes arriscados e em tantos casos pittorescos e mesmo comicos passados na antiga Flotilha de Submarinos, se procure contar tambem algum capaz de mostrar o espirito de camaradagem e cooperação a mais efficaz e producente em que nella se vivia.

Dizem que nas unidades confiadas ao grande Nelson, os seus commandados viviam como "a band of brothers". E é bem possível, mesmo porque, sem essa condição preciosa em uma força naval, não era muito facil que, em momentos tão delicados e decisivos, os tripulantes de seus navios houvessem feito tanto quanto fizeram.

Sentimento igual guiou os primeiros passos do pessoal da Flotilha, cuja existencia, seus dedicados servidores não querem deixar apagar-se, sepultada em profundo esquecimento. Essa asserção, concordamos, exije bem uma prova ou cousa equivalente que tire qualquer duvida sobre sua veracidade. Vamos dal-a bem significativa, contando um facto que se passou durante as provas para a obtenção do "Premio Independencia" em 1916.

Disputavam ardentemente esse concurso os tres submarinos que possuíamos. Lá pelo meio do prazo marcado, andavam os "FF" tão proximos em pontos, um dos outros, que seria um tanto arriscado afirmar-se de antemão qual o que naquelle anno iria inscrever o seu nome num dos escudos de prata que ornavam o bellissimo conjuncto que constituía o cubiçado troféu.

Um, porem, havia que dia a dia ia tornando mais elevado o seu score, nas diversas circunstancias preestabelecidas; esse era o "F-5 ",  já vencedor do concurso do anno anterior.

Em uma bella tarde, a sua guarnição aprontou-o para a prova do dia seguinte e parte della foi para terra em gozo de uma folga muito merecida. Tudo havia ficado em ordem; os torpedos fartamente experimentados e alojados cuidadosamente em seus tubos, assim como os demais apparelhos promptos, de modo a poupar qualquer parcella de tempo que o submarino dispunha para effectuar os seus dois tiros para o concurso.

Mas em navios tão complicados e tão delicados, não raras vezes o desejo de tel-os promptos á primeira vóz, dá lugar a algum contra-tempo, ou melhor, a algum caso que até á sua manifestação positiva, era cousa fóra de qualquer conjectura.

Assim foi que, estando o "F-5" nessa tarde pacificamente prezo á sua amarração costumeira, no caes de Mocanguê, seus tripulantes que ainda estavam a bordo sentiram como um choque inesperado e simultaneamente produzir-se o disparo de um torpedo, que por signal encontrando campo livre, correu em magnifica trajectoria, cerca de 2.000 metros, fluctuando depois perfeitamente como si houvesse sido lançado em um disparo de exercido a curta distancia. Technicamente o motivo de tal surpreza, um tanto desagradavel, não foi difficil de ser constatado. Passado o facto e recolhido a bordo o torpedo fujão, apresenta-se a todos uma situação mais seria: era provavel que a pressão que se havia produzido dentro do tubo até abrir violentamente a sua comporta externa, tal não houvesse feito sem deixar como vestígio alguma avaria, talvez importante para impedir o navio de continuar a participar da disputa do premio, ou pelo menos, a perder considerável numero de sahidas, o que iria collocal-o em condições bem inferiores a de seus concurrentes, para a victoria final que se esboçava.

Alem disso, para examinar convenientemente o que se havia passado, necessitava o navio ir ao dique, ou então encontrar-se uma pessôa perfeitamente conhecedora do apparelhamento do tubo, para em mergulho ou mettida num apparelho de escaphandro, examinal-o cuidadosamente.

E, emquanto se faziam taes conjecturas veio a noite impedindo com as suas trevas de se fazer qualquer cousa naquele ambiente tão pouco claro como são as aguas da nossa Guanabara.

O Commandante do "F5", ao contrario dos seus collegas dos outros dois "FF", não era grande nadador e muito menos mergulhador; assim tornava-se inevitavel a parada do navio, por alguns dias.

No dia seguinte, entre oito e nove horas da manhã, quando chegava o Commandante da Flotilha á Base, viu nas proximidades da prôa do "F5" apparecerem e desapparecerem da superfície dagua, então calma e tranquilla, dois habeis mergulhadores que pareciam discípulos emeritos dos conhecidos apanhadores de moedas que havíamos visto algumas vezes em Barbados e S. Vicente e que, depois de varios mergulhos, traziam a noticia agradavel de que nem o tubo nem a sua comporta havia soffrido avaria alguma e que esta poderia ser facilmente fechada, desde que se lhes substituíssem alguns de seus pinos e desempenassem algumas de suas hastes.

Esses mergulhadores de ultima hora eram os comandantes dos submarinos "F1" e "F3" que, como vimos, tomavam parte no concurso e disputavam, avidamente, o numero de pontos que lhes permitissem a cubiçada victoria.

Nesses dois ultimos navios notava-se tambem desusado movimento a essa hora da manhã. Explicou-se depois: eram as suas guarnições que auxiliavam a do "F5" nos trabalhos de que necessitava para o seu immediato reparo.

E assim foi a causa determinada e reparados os estragos e em menos de dois dias achava-se novamente o "F5" em condições de proseguir na lucta em que tão brilhantemente se achava empenhado.

Reflectimos depois maduramente sobre o facto de apparencia tão simples mas que, na verdade, tinha uma significação especial, bem mais importante do que se poderia avaliar no momento.

Como se viu, os primeiros a correr em auxilio do seu leal adversario foram justamente os commandantes dos outros dois submarinos, utilisando-se de suas qualidades pessoaes em um sport ao qual o commandante do "F-5" não era muito afeito; esse exemplo propagára-se e as guarnições imitaram-no.

Em gente de outra especie, esse contra-tempo seria ensejo para gozar "de tout son coeur'' o prazer satanico de vêr, para a disputa de um premio a que os antigos submarinistas ligavam tanta importancia, um dos seus concurrentes irremediavelmente posto fóra de combate.

Este facto que relatamos ao correr da penna, prova o que dissemos ao inicio de sua narrativa, sendo na sua singeleza sufficiente para dar, como queriamos, uma idéa do espirito de cooperação, da harmonia, da lealdade e como consequencia, da mais perfeita camaradagem com que se formou na nossa Marinha a sua primitiva Flotilha de Submarinos, espirito que ainda existe e que existirá sempre e que reviverá fortemente no dia em que outras unidades do mesmo typo venham permittir a formação de uma outra que, recordando factos como este, em tudo será digna de comparar-se á primeira que possuiu o Brasil.

E quando essa mentalidade predominar em todas as unidades de nossa Marinha de Guerra, nos seus navios, em todos os seus departamentos e entre todo o seu pessoal, como será ella feliz!

E, agora, julgamos de justiça citar os nomes desses commandantes, que deram aos seus commandados tão altruísticos e nobres exemplos de desprendimento e abnegação: eram os então Capitães Tenentes Nogueira da Gama, Lemos Basto e Adalberto Landim, respectivamente do "F5", "F3" e "F1".

F. F. F.


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