INTRODUÇÃO
No conturbado período em que viveu o Brasil, nas
décadas de 1920 e 1930, aconteceram vários movimentos militares, em alguns dos quais a
Marinha esteve diretamente envolvida.
Um deles, ocorrido em 4 de novembro de
1924, conhecido como a revolta do encouraçado São Paulo, despertou-nos o
desejo de maior aprofundamento histórico, em especial na participação da então
Flotilha de Submersíveis, provocado, principalmente, pela manifestação de autores que,
apesar de testemunhas, descreveram os eventos e caracterizaram atitudes de forma não
condizente com o juízo que fazemos dos nossos primeiros submarinistas.
Estes homens abnegados, que pelo simples fato de
guarnecerem máquinas infernais, ainda pouco desenvolvidas, e portanto inseguras, como
eram os submersíveis naquela época, não poderiam deixar de ter uma grande dose de
coragem, mas dela foram acusados de lhes faltar, no momento de aderir ao movimento, em
novembro de 1924.
Assim se manifestou, cinqüenta e cinco anos
após o evento, por exemplo, Carlos Alves de Souza, que na ocasião era Primeiro-tenente
servindo como auxiliar no Gabinete do Almirante Alexandrino, então Ministro da Marinha:
"Fui ao Catete e depois de obter
autorização do Presidente segui para o capitânia da Flotilha de Submersíveis. Senti da
parte dos submarinistas a maior má vontade em cumprir as ordens do Ministro. Estavam
todos comprometidos, mas não tiveram coragem de aderir ao movimento revolucionário.
..."(1)
A leviandade de tal afirmativa já foi provada,
à saciedade, em outra ocasião(2), mas permaneceu-nos o desejo de melhor conhecer o
episódio, com maior profundidade.
Alguém escreveu que a "História é uma
farsa."
Acreditamos em tal afirmativa, na medida em que a
História pode ser conformada segundo a visão polarizada dos vencedores, ou a visão
viciada dos perdedores, quando deve sê-lo pela visão qualificada do verdadeiro
pesquisador-historiador, imune às diversas influências que levam um indivíduo a narrar
os fatos segundo seu ponto de vista particular.
No entretanto, tais pessoas sempre existirão, e
é preciso consultar seus escritos com tolerância e paciência para detectar a verdade,
escoimando da farsa os inconvenientes juízos de mérito, ou de valor, que levam a adaptar
suas narrativas aos interesses particulares.
Esta verdade a que nos referimos deve ser muito
bem curtida pelo passar dos anos. Consolidada no arrefecer dos ânimos e paixões, deve
desvestir-se das vaidades e ser isenta da sanha de inserir-se, se testemunha ou
partícipe, como ator importante ao qual pode ser atribuída autoria, ou participação
proeminente nos fatos.
Sobre o levante do Encouraçado São Paulo, o
autor, citado linhas atrás, escreveu com a autoridade que as lembranças passadas lhe
permitiram, mas, lamentavelmente, traíu-se, ou pela falha de memória, ou por manifesta
vaidade. Talvez o justifique a confissão de que estava em tempo de crise.
Se tal insurreição foi, conforme o libelo do
Procurador Criminal da República interino Sobral Pinto, como decorrência do IPM
instaurado
"senão o corollário necessario da
propaganda subversiva desse pequeno grupo de insubordinados a que esta Procuradoria, na
denúncia que offereceu sobre a conspiração chefiada pelo Capitão de Mar e Guerra
Protogenes Pereira Guimarães, já se havia referido ..."(3)
é porque havia uma proposição perversa, da
qual resultou tal corolário, e que não pode ser negligenciada, para que bem se possa
entender os acontecimentos.
A limitação cronológica linhas atrás
mencionada tem apenas o sentido de localizar o leitor para os eventos que pretendemos
recordar, e não é demais relembrar que nela estão presentes todas as mazelas herdadas
de um contexto mais amplo, desde a proclamação da República e continuando pelos
diversos governos republicanos seguintes.
O QUADRO INICIAL
Comecemos por comentar que julgamos
definitivamente equivocado considerar que na História importem mais os fatos do que as
pessoas, uma vez que aqueles, em geral, só se explicam quando se conhecem as
personalidades envolvidas; no caso em questão, os homens que chefiavam política e
militarmente a Marinha, e principalmente, os seus comandados, dos oficiais aos mais
modernos marinheiros da nossa Armada.
Os principais vícios da proposição referida
restavam justamente sobre o mau gerenciamento do pessoal, e a excessiva centralização da
autoridade, que redundantemente, agravava o primeiro. Eram falhas gritantes nos modelos
adotados nas reformas conduzidas pelo Almirante Alexandrino1,
que foi Ministro em três ocasiões distintas, inclusive a da revolta do Encouraçado São
Paulo:
Senão vejamos:
a) a excessiva centralização administrativa
(pela subordinação direta ao Ministro de grande número de órgãos, abrangendo a
direção setorial superior e a prestação de serviços, e porque ele avocava a si,
praticamente, todas as decisões, até nos menores detalhes, "o que intimidava e
desestimulava os chefes setoriais e isentava responsabilidades nas soluções dos
inúmeros e imensos problemas da administração Naval.")(4); e
b) o trato de problemas referentes aos
diversos corpos e quadros de pessoal (fossem oficiais, inferiores ou praças) que era
atribuído individualmente ao EMA e às diferentes Inspetorias Técnicas, não existindo,
portanto, uma política única de pessoal. Assim, os quadros envelheciam, deteriorando as
perspectivas de carreira. Por seu turno, as escolhas dos oficiais para as diversos
comandos se davam muitas vezes mais pela simpatia que puramente pelo mérito.(4)
Esse tipo de gestão, mesmo depois da morte do
Almirante Alexandrino, continuou a enfraquecer a organização administrativa da Marinha e
o ânimo do pessoal. Ele eracaracterizado pela centralização da tomada de decisões de
toda ordem, da qual resultaram hábitos perniciosos, tais como a falta de iniciativa dos
escalões subordinados, o encaminhamento de quase a totalidade dos problemas à
consideração superior, e a falta de cooperação horizontal na busca de soluções para
os problemas comuns, entre outros.
Tal quadro veio a ser agravado iterativamente por
fatores de fraqueza como
"a) a insuficiência, tanto em número
quanto em qualificações, dos quadros de pessoal;
b) a dependência do estrangeiro para adquirir,
reparar ou modernizar as unidades da nossa força naval, e para a obtenção de carvão
combustível, sobressalentes e munição, itens necessários à movimentação,
manutenção e adestramento das unidades navais e suas tripulações."(4)
A satisfação não podia ser total.
Paulatinamente, pela imobilidade, se acentuavam a desmotivação profissional da
oficialidade e mesmo a das guarnições.
Devemos lembrar que não se passara muito tempo
depois das revoltas dos marinheiros2, e as feridas do
ressentimento e da desconfiança talvez ainda não estivessem completamente saradas.
Naquela época, diversos fatores, tais como o
comportamento dos chefes, a desconhecimento por muitos do que se passava, a má
remuneração do pessoal, a baixa qualidade do elemento humano, que apresentava razoável
índice de analfabetismo, o estado do material, as perspectivas de carreira, a
experiência de Ministros civis no governo anterior, entre muitos outros, certamente não
cristalizaram a disciplina espontânea e inconteste, como última palavra nos fundamentos
da organização naval.
Excetuados os entusiasmados e crentes,
pelas características das atividades que praticavam (como eram referidos os submarinistas
e aviadores), talvez houvesse muito mando, mas ausência de liderança nos diversos elos
da cadeia de comando.
A grande moldura desse quadro era a situação
nacional, de insatisfação geral pelo domínio da República por uma oligarquia
política, apoiada nos centros econômicos de Minas e São Paulo, a qual mantinha as
rédeas do poder, aproveitando-se de legislação peculiar, o voto a descoberto e o
controle eleitoral exercido pela Comissão de Verificação de Poderes nos níveis federal
e estadual 3(e conseqüentes eleições fraudulentas).
Dela resultou a contaminação da jovem
oficialidade do Exercito e da Marinha, evoluindo para movimentos militares que culminaram
com a Revolução vitoriosa de 30, quando participou ativamente a facção política
derrotada nas eleições presidenciais daquele ano.
Não é por demais lembrar a exacerbação do
descontentamento aí pelo ano de 1922, quando se criou uma questão militar, da
qual resultou o movimento que se denominou de Tenentismo.(4)4
Derrotados em 1922, não cessaram as atividades e
os conspiradores infiltraram-se nas guarnições militares por todo o país.
Em 1924 eclodiram movimentos no estado de São
Paulo(5 de julho), em Sergipe, Belém e Manaus(13 de julho) e no Rio de Janeiro. Nestes
dois últimos episódios a Marinha teve papel saliente.
É nesse caldo de cultura que se inserem os
movimentos revolucionários da década de vinte.
Dinâmico, mas autoritário, características que
o tornaram um grande Chefe Naval, não fizeram o Almirante Alexandrino querido por todos.
Divididas as paixões, nos momentos de convulsão
política, se apresentaram revoltosos e legalistas em todas os segmentos, entre eles os
submarinistas.
A REVOLUÇÃO DE ISIDORO E AS REPERCUSSÕES NA
MARINHA
A Esquadra, fundeada na cidade do Rio de Janeiro,
executava zelosamente a sua rotina de exercícios. Os ecos da política mal chegavam aos
navios, salvo os férteis boatos muito freqüentes na época, e que, quando circulavam,
vinham enriquecidos com detalhes maliciosamente incorporados pela ironia, característica
peculiar aos oficiais mais jovens. No dia a dia, a vida corria tranqüila, nada fazendo
supor a proximidade de uma guerra civil, que se insinuava abaixo da linha do horizonte.
Todas as manhãs largavam, às 9 horas, do cais
do Arsenal, as lanchas que transportavam os oficiais licenciados, de regresso para os
navios. Enquanto aguardavam a hora de embarque, corria o Jornal da Praia a sua edição
diária, com as rodas formadas pelos mais antigos que conversavam sobre o serviço, e os
mais modernos, dedicados aos seus assuntos preferidos - os comentários sobre esportes e
as namoradas.
A manhã de 5 de julho de 1924
constituíu-se em extraordinária exceção, com todas as rodas absorvidas por um tema
único - o que estava ocorrendo em São Paulo? Falava-se com insistência na revolta da
guarnição do Exército, mas sem detalhes que a esclarecessem.
Quando os oficiais chegaram a bordo foi-lhes dada
a conhecer a comunicação oficial de que, desde as primeiras horas da madrugada, a
capital paulista encontrava-se dominada por intensa luta, travada entre forças legalistas
e revolucionários chefiados pelo General Isidoro Dias Lopes5, estes com
significativa adesão de substancial parcela da Força Pública Estadual.
Lembrando 1922, dois anos depois, exatamente na
mesma data, renascia o 5 de julho.
A bordo do CT Rio Grande do Norte o 1º Tenente
Gerson Macedo Soares acabava de examinar os planos do navio com o Comandante Francisco
Espiridião de Andrade, para determinar qual "o pontal avante, a meia nau e a
ré", quando adentrou o oficial de comunicações com a mensagem acabada de receber,
que determinava sustar o licenciamento.
Regressando para seu navio, o CT Matto Grosso,
Macedo Soares presenciou a azáfama criada; outra mensagem, esta ordenando
"promptidão rigorosa"; a vinda para bordo do Comandante da Flotilha de
Contratorpedeiros, Capitão-de-Fragata Mário de Paula Guimarães, que ainda do interior
da lancha determinou que o CT se aprontasse para largar rumo a Santos o mais cedo
possível.
Dentro do pouco tempo disponível, foram tomadas
providências em caráter de emergência: pedidos de sobressalentes ao Depósito Naval;
escalar externos para chamar os oficiais; acender as caldeiras (mas como não havia lenha
a bordo, obrigou o chefe de máquinas a buscar barricas velhas nas obras do dique da Ilha
das Cobras. Os poucos oficiais a bordo, no seu dizer, pareciam "abelhas mestras"
dando ordens, ou então, ao se cruzarem, trocando impressões e ousadas conjecturas.
Como os oficiais estavam desprevenidos, sem
roupas no navio, Espiridião licenciou-os por duas horas, para apanhá-las.
Macedo Soares, ao chegar em casa e avisar à
família que ia partir, deixou-a bastante apreensiva pelos riscos envolvidos, e mais ainda
estupefacta, pelo inusitado dos fatos.
Ao regressar para bordo, deparou no caminho com
os jornaleiros que apregoavam as primeiras notícias que, em sua observação, pouca
atenção despertavam nos transeuntes.
No Arsenal Macedo Soares encontrou seu colega de
camarote, 1º Tenente Roberto Faller Sissón, e passaram a aguardar a condução que os
levaria para o Matto Grosso. Sua atenção foi despertada quando, em dado momento, um
soldado do Exército, muito perfilado, apresentou-se na sala de estado ao oficial de
serviço, Capitão Tenente José Leite Oliva:
" - Prompto seu commandante , onde é que
descarrego a alfafa que está ahi numa carroça?
- Alfafa?
O Leite Oliva nada sabia de alfafas, mas o
soldado explicou "que era para uma certa força que devia embarcar no Minas
Geraes." (5)
Continuando suas observações, Macedo Soares
testemunhou o intenso movimento que fora desencadeado pela urgência das providências
tomadas:
"Chegara o almirante Frontin, director do
Arsenal; andava dando ordens o commandante Amancio, director do material; viam-se
officiaes que chegavam, chamados em casa por um memorandum urgente, ordenanças, soldados
navais, taifeiros com embrulhos, em cujas pernas era atropelado um cachorrinho vagabundo e
manco de uma pata traseira." (5)
Por volta das 21 horas embarcou numa lancha o
chefe do Gabinete do Ministro Alexandrino, acompanhando o Almirante Aristides Mascarenhas,
que fora preso e era conduzido para o Belmonte. Comentava-se que outras prisões tinham
sido efetuadas.
Naquela mesma manhã, ao chegar a bordo do São
Paulo, o 2º Tenente Augusto do Amaral Peixoto Júnior cientificou-se das ordens: rigorosa
prontidão, e determinação de preparar o encouraçado para qualquer ação.
À noite de 5 de julho suspendia
para Santos uma parte da Esquadra, constituída pelo Minas Geraes, Barroso, Benjamin
Constant, Alagoas, Matto Grosso, Rio Grande do Norte, Amazonas, Maria do Couto, Tenente
Lahmayer, duas esquadrilhas de aviões F-S-L; dois HS-2 e dois MF.
Segundo depoimento de Amaral Peixoto, o resultado
desta expedição foi desastroso:
"Sem nenhum preparo essa Força foi até a
capital paulista de onde regressou sofrendo sério revés. Milagrosamente escapou de ser
aniquilada ou aprisionada." (6:10-16)
As notícias chegavam ao Rio e aos navios com
exagerado aumento. Como conseqüência desse fracasso, e para apoio moral, o Encouraçado
São Paulo, aos 18 de julho, recebeu ordens de preparar uma Companhia de Marinheiros, que
deveria seguir viagem no mesmo dia. Foi designado para comandá-la o Capitão Tenente
Augusto Pereira, oficial distinto, respeitado por todos os seus colegas, e que assinara na
lista de voluntários, pois o Ministro da Marinha desejava que a oficialidade fosse toda
de fiéis defensores do Governo.
Fato notável, a respeito de tal lista, é que
nenhum Segundo tenente compareceu para subscrever o voluntariado governista, o que levou o
comandante do navio a efetuar sorteio entre os oficiais para integrar o contingente que
seguiria para Santos.
Amaral Peixoto foi sorteado, juntamente com o 2º
tenente Carlos Alberto Saldanha da Gama, quem ele considerava "boníssimo", e
que faleceu muito jovem. Contudo, apesar do sorteio entre oficiais de uma lista na qual
nenhum segundo tenente aparecia, a nota lançada nas cadernetas subsidiárias de todos os
oficiais dizia:
"Destacou voluntariamente como oficial do
contingente que seguiu para Santos, afim de cooperar na ação contra o levante em São
Paulo, em 18 de julho de 1924, chegando a Santos a vinte, seguindo para operações de
guerra em São Paulo, onde permaneceu na linha de frente até 28, partindo a 29 por via
férrea e regressando a bordo em 30 do mesmo mês." (6:10-16)
Amaral Peixoto e muitos outros oficiais
discordavam da ordem de Alexandrino. Para eles, o aspecto técnico do emprego de uma tropa
formada por marinheiros, não habilitados para lutar em terra, era discutível.
Reconquistar a cidade de São Paulo, ocupada por tropas de infantaria do Exército, mais
as da Força Pública, a primeira apropriada para manobras no terreno, e a segunda,
preparada por uma Missão Militar Francesa e dotada de treinamento específico para o
combate urbano, numa luta cujo objetivo seria a retomada de rua por rua, ou casa por casa,
levava à certeza de que a ordem de Alexandrino constituía alto risco para os não
habilitados expedicionários navais. No seu entender, a tarefa de combater na capital
seria mais apropriada para o Batalhão Naval, apoiado pela Força Naval que ocupara o
porto de Santos, esta sim em missão específica da Marinha. Segundo os discordantes, o
emprego do Batalhão Naval teria sido a decisão adequada.
O que Amaral Peixoto se referiu como "apoio
moral" mascarava apenas o emprego político da Marinha, uma vez que as
considerações de ordem militar, seriamente criticáveis quanto ao emprego do contingente
de marinheiros, foram de fato relegadas pelo aspecto político inerente, qual seja, o de
demonstrar que a Marinha solidarizava-se com o Presidente Bernardes6 e lhe
prestava apoio.
Com o abandono da cidade de São Paulo pelos
revolucionários, no dia 287, os navios e a força naval desembarcada receberam
ordens de regresso, pois caberia ao Exército continuar a luta em perseguição aos
retirantes.
Ironia do destino, Amaral Peixoto não podia
imaginar que cinco meses depois combateria o governo de Bernardes, tendo como companheiros
os seus ex-adversários desta ocasião.
Macedo Soares, que continuaria legalista nas
revoluções seguintes, sugeria não ter plena convicção do procedimento que adotara
naquela ocasião, pois se questionava sobre a legalidade do governo do Presidente
Bernardes:
" ... Si esse governo não é o governo da
lei, nem do direito; não é um governo de bem, nem de boas intenções, nem de honra como
affirmam os revolucionários em seus manifestos, o papel da Marinha nessa acção febril
que desenvolveu, luctando contra a precariedade de seus proprios recursos, foi o mais
impatriótico possível!
Á Historia para, no futuro, fazer o
julgamento." (7:152)
A dúvida de Macedo Soares clareou-se seis anos
mais tarde, quando o sucessor de Bernardes, o Presidente Washington Luiz, foi deposto pela
revolução de três de outubro de 1930.8
Aldo Sá Britto de Souza9, 1º
Tenente, imediato do submersível F-5, também revolucionário, faz a sua apreciação dos
acontecimentos político-militares do ano de 1924, reputando como suas verdadeiras
motivações dois aspectos que mais se destacavam; a insatisfação reinante no âmbito
interno da Marinha com o Ministro Alexandrino, magnificada pela ainda maior rejeição ao
Presidente Bernardes, e a revolução paulista de 5 de julho.
Inicialmente considerou a atuação de
Alexandrino, que a partir de 1906, num interregno de vinte anos, foi Ministro de Afonso
Penna, Nilo Peçanha, Hermes da Fonseca, Wenceslau Brás e Arthur Bernardes, num total de
quatorze anos, com as prejudiciais conseqüências desta longa permanência do poder em um
único centro de decisão.
Aldo Sá Britto de Souza fez uma comparação
entre as gestões de Alexandrino e a do seu antecessor, o Ministro civil João Pedro da
Veiga Miranda, com sensível desvantagem para o chefe naval, pois no seu modo de ver:
"O Ministro Veiga Miranda percebeu rápido a
psychologia dos nosso officiaes de mar e procurou, com o fim de afastal-os da politica
travada, despertar-lhes o amortecido amor á profissão. Velhas aspirações da Marinha,
sepultadas nos relatórios e pareceres, foram exhumadas, e assim dados os primeiros passos
para a futura concretização de medidas tendentes á solução dos principaes problemas
navaes e suas conexões com a esquadra e a siderúrgica.10
A esquadra se fazendo ao mar em constantes e
úteis exercícios, projectos de grande remodelações e de construcções navaes, tudo
isso e mais a promissora vinda da Missão Americana, davam a impressão de que o
Presidente Epitácio, por seu terceiro Ministro civil, queria repor a Marinha em seus
devidos eixos. É bem de ver a impossibilidade de tal commetimento se tudo, ou quase tudo
vem de há muito desalinhado.
Sympathisada por uns, repellida por outros,
olhada com indiferença por terceiros, a idea subversiva não poderia germinar na Flotilha
de Submersíveis, e ella, que era, dentro da nossa triste e real impotência naval, um
núcleo efficiente da esquadra, era também na phrase de seu commandante de então,
capitão de fragata Joaquim Buarque Lima - de inteira confiança do governo."(8)
Com o advento de Arthur Bernardes na presidência[1922
a 1926], Veiga Miranda transferiu o ministério ao Almirante Reformado Alexandrino
de Alencar, que assumiu em 15 de novembro de 1922, aos setenta e quatro anos de idade. A
partir desta data, Aldo Sá Britto de Souza identificou as graves e perturbadoras
alterações no seio da Marinha, causadas pelo estilo centralizador característico da
ação administrativa de Alexandrino, chamando-as de Mudança de Ambiente, e
retratando-as como descreveu:
"Corre o segundo anno da presidencia
Bernardes estando a Marinha, pela ultima vez entregue ás mãos do almirante Alexandrino.
Sempre tive pelo velho marinheiro a admiração que se pôde ter pelos homens que sabem
praticar lances de bravura, discordando, porem, do seu feitio de commandar. A
officialidade da Flotilha, com excepções, das quaes algumas bem honrosas, era ou parecia
ser hostil ao Ministro, alvo muitas vezes de perniciosos commentarios.
O governo vinha dia a dia se impopularizando. O
sr. Arthur Bernardes, com aquele perfil psychopatologico riscado com mestria por Assis
Chateaubriand em "Terra Deshumana", implantava com crueldade a Torquemada o
regime da tyrannia. As promoções e recompensas por serviço pessoaes, as detestaveis
provas de incondicionalismo exigidas para a mínima pretensão de direito, o maldito
systema de espionagem com o conseqüente premio da delação, criavam uma atmosphera
carregada de intrigas.
Revoltavam-se muitas consciencias.
A mudança de ambiente preparava os espíritos
para a arriscada cartada da revolta, de todos temida pelo imprevisto das conseqüências,
e por muitos desacreditada em face do insucesso recente.
O commando superior dos submarinos era agora
exercido pelo capitão de fragata Castro e Silva (1924/25), que pelo seu trato fidalgo
captivava a nós, os officiaes e que trazia a nossa minúscula Flotilha em constante
treinamento, vivendo-se a bordo, uma vida de afazeres e competições, em excellente
disciplina, magnifica camaradagem e admirável correção militar.
A revolta tinha já ahi francas sympathias. Só
uma revolta - era a phrase commum ouvida ao commentar-se os actos que o governo vinha
praticando. O movimento militar do general Primo de Rivera11 era muito
applaudido entre os submarinistas, que sentiam a necessidade de um semelhante cá em
casa."(9)
Reforçando as opiniões de Amaral Peixoto e
Macedo Soares, Aldo Sá Britto de Souza realça as repercussões no âmbito da Marinha, da
ocupação de São Paulo pelo General Isidoro Dias Lopes e, depois, da sua organizada
retirada para a região do rio Paraná, onde a luta continuou por quase um ano, sem que os
revolucionários fossem derrotados, malgrado os grandes esforços do Exército, Forças
Publicas Estaduais e Batalhões Patrióticos. Para ele:
"Este importante acontecimento foi o factor
impulsivo que iria atirar a idéa no terreno da realidade.
O 5 de julho chefiado pelo general Isidoro Dias
Lopes exaltou os revoltosos sympathicos da Marinha e poz-lhes logo em actividade, do
começo muito pouco úteis pela absoluta falta de coordenação entre os elementos
esparsos.
A tensão de espíritos daquelles dias de
apprehensões só fazia excitar, e como tal descobriu baterias12, mas mesmo
assim os mais prestimosos trabalhavam e, no meio de absurdos e contraditorios boatos
procuravam agir incontinenti.
Sobrevinham alternativas de encorajamento e de
desalento quando, sem perder a fé na possibilidade da acção, sondando, balanceando
elementos, obtendo adeptos pela persuasão, coordenando e bem vezes ouvindo soezes
insultos aos que lutavam de armas na mão, iniciávamos a faina enervante de organizar a
revolta; o desanimo, porém, nunca poude se implantar nas fileiras libertadoras da
Flotilha. Dellas era soldado um destes typos de rara beleza moral, ardoroso e idealista, a
par do physico empolgante e da intelligencia lúcida e culta que o fazem um forte - Ary
Parreiras, tenente, então aluno da Escola de Submersíveis.
Entravamos, assim, com a irrupção do movimento
de rebeldia em São Paulo, no terreno franco da acção.
Estávamos irmanados com os revolucionários, sem
com elles termos tido entendimento, por ideal, por adhesão aos princípios pregados, por
patriotismo, por anhelos communs, por anseios de dias mais felizes para o Brasil, o que
acreditávamos obter derrocando o apparelhamento governamental montado e substituindo-o
por outro, aos nosso olhos, menos impatriótico.
Agíamos no sentido de secundar as tropas do
general Isidoro com um golpe talvez decisivo, pela surpresa na capital, se bem ainda
desorientados por isso que não possuíamos um chefe com as necessárias credenciaes.
É quando, depois de ascultado por alguns dos
nossos, o commandante Protogenes, sciente dos meios com que contaria, aceita a chefia do
movimento."(10)
Muitos dos conspiradores não conheciam o seu
chefe mas, na medida que o relacionamento era iniciado as simpatias pessoais cresciam,
como constatara Aldo Sá Britto de Souza:
"Nunca servi com o commandante Protogenes.
Felizmente não me enganei; factos posteriores transformaram o primeiro impulso sympathico
pelo homem bom em admiração pelo chefe bom, que sabe amparar os commandados, que ouve as
queixas dos pequenos, envidando esforços em minorar-lhes o soffrer.
Aureolado pelo prestigio que, de há muito vinha
crescendo em torno de seu nome, foi a noticia da sua resposta affirmativa recebida com
enthusiasmo por nós moços, temerosos até então das conseqüências que poderiam advir
do paiz entregue no dia seguinte a meia dúzia de tenentes sinceros, porem,
inexperientes."(11)
No Rio de Janeiro, na véspera da data marcada
para o início do movimento realizou-se uma última reunião.
À casa do ex-governador do Maranhão Herculano
Parga, em Copacabana, compareceu grande número de adversários políticos de Bernardes,
como os senadores Antonio Muniz e Muniz Sodré, deputados Baptista Luzardo, Plínio Casado
e João Batista de Azevedo Lima.
Protogenes leu para os presentes um longo
manifesto que continha o programa da revolução, abordando temas de ordem política,
desenvolvimento econômico, ressurgimento das liberdades públicas, reforma
constitucional, anistia, etc.
Com a concordância dos seus termos pelos
presentes, encerraram-se as providências de caráter tipicamente políticas.
Na parte militar o plano de ação também fora
ultimado e relacionava o desenrolar pretendido dos acontecimentos:
- A rebellião explodiria às duas horas da
madrugada de 21 de outubro, após Protogenes ter embarcado num dos encouraçados, cujo
comando assumiria. Uma vez de posse do navio, ele ordenaria o sinal convencionado, uma
salva de 21 tiros.
- Reconhecido o sinal, e só após, os
participantes civis e militares entrariam em ação, cada um no local predeterminado,
iniciando a missão que a cada um cabia, ou desenvolvendo a atividade que as
circunstancias possibilitassem.
- A Flotilha de Submersíveis, aprestada desde o
anoitecer, deslocar-se-ia do seu ancoradouro para as proximidades dos encouraçados, e com
a ameaça de imediato torpedeamento forçaria a adesão das guarnições recalcitrantes.
- Da mesma forma o destróier Rio Grande do Norte
largaria do cais da Ilha das Cobras, onde se achava atracado, afim de secundar a ação
dos outros navios já rebelados.
- A Aviação Naval, cujo comando Protogenes vinha de deixar, e
onde contava com amigos dedicados e decididos, prestaria logo o seu concurso com os meios
valiosos de que dispunha, bombardeando os alvos selecionados.
A FLOTILHA DE SUBMARINOS E A CONSPIRAÇÃO
PROTÓGENES
Domingo, 19 de outubro de 1924, o
Capitão-tenente Attila Monteiro Aché13 recebeu
uma visita em casa. Não era para tratar de assunto afável, ou conversação adequada ao
dia sem serviço de bordo. Encobrindo a identidade do recém chegado, o anfitrião relatou
o encontro como de
"Um amigo, que me comunicou que o movimento
estava prestes a arrebentar e confirmou que o meu posto era o submersivel
F-3."(12:28)
Anos mais tarde, com o seu linguajar
característico, Aché descreveu em detalhes o diálogo havido naquela ocasião:
"-Olha, vai haver um levante na Marinha,
chefiado pelo Comandante Protogenes, qual é a sua posição?
Eu, digo: - Olha, eu não sei nem quero saber.
Vocês digam o que é que eu tenho de fazer e para onde eu tenho, devo ir, qual o dia e a
hora, eu irei. Eu ficarei com a Marinha em qualquer circunstância.
Então eles me disseram: - Você vai comandar o
F-3."(13)
Este encontro provocou duas reações. A
primeira, de alívio, pelo fim de uma preocupante espera. A segunda, de caráter pessoal,
revelava o conflito entre a participação revolucionária, plena de riscos, e a
proteção da família. Por isso, Aché
"irritou-se com esta extemporanea visita,
pois sua senhora ficou bastante desconfiada. Em casa nunca fallou estar envolvido nesse
movimento, razão porque sua senhora tudo ignorava."(14:20)
Sua função era a de instrutor da Escola de
Submersíveis, instalada a bordo do tênder Ceará, navio esse que tinha como principal
função o transporte e apoio dos submersíveis.14
Como de costume o tênder arvorava o pavilhão de
capitânia da Flotilha, constituída também pelos submersíveis F-1, F-3 e F-515,
todos de fabricação italiana. O prefixo F indicava serem da classe Foca, tendo sido
construídos no estaleiro da Fiat-Sant Giorgio. Com dez anos de vida ativa na Marinha, a
adequada manutenção recebida resultara em igual condição operativa. Seu emprego
básico visava à instrução mas, por serem dotados de torpedos com cabeças de combate,
estavam capacitados a atacar quaisquer navios.
O submersível designado para Aché, o F-3, tinha
como comandante o Capitão-Tenente Armando de Pinto Lima, que mantinha, permanentemente, a
decidida postura de fidelidade ao governo. Em posição antagônica, e com franca adesão
à conspiração, situavam-se os dois outros submersíveis, o F-1, comandado pelo
Capitão-Tenente Nelson Simas de Souza, e tendo como Imediato o 1º Tenente Edgard de
Oliveira, e o F-5, comandado pelo Capitão-Tenente Mário de Azeredo Coutinho, e
imediatado pelo 1º Tenente Aldo Sá Brito de Souza.
Pinto Lima, desde a revolta de Isidoro Dias Lopes
em São Paulo, acompanhava atentamente o estado de espírito de seus colegas, observando
com preocupaçãoa crescente evolução da opinião dominante na Praça D´Armas, a qual,
a partir de uma situação de neutralidade, evoluíra para a de franca simpatia, e
posteriormente, para a de adesão à revolução que se delineava.
Mais de uma vez Pinto Lima tivera a oportunidade
de manifestar ao Comandante da Flotilha, Capitão de Fragata José Machado de Castro e
Silva, a sua nítida preocupação com a gravidade da situação vigente. Ele julgava que
Castro e Silva não tinha uma adequada avaliação do que ocorria entre os seus
subordinados. Sugeriu, sem ser atendido, medidas que, a seu ver, poderiam evitar as
perigosas conseqüências do que estava por vir, como a substituição dos comandantes e
imediatos dos demais submersíveis, e a transferência dos outros oficiais sobre os quais
pairava suspeição. Pinto Lima, dois anos mais tarde, em petição que dirigiu ao
Presidente Bernardes, reivindicando uma comissão no estrangeiro, por se julgar merecedor
por ter terminado o curso de aperfeiçoamento de submersíveis "com
distinção", relatou as providências que tomara naquela ocasião e que, a seu ver,
o tornavam credor do Presidente:
"A conspiração havida na Flotilha de
Submersíveis não me surpreendeu. Desde julho, com a revolta no Estado de São Paulo,
notei que entre os Officiaes da Flotilha, havia alguns que, si não eram francamente
revoltosos, nutriam, entretanto, sympathias por elles. Para esse Officiaes os boletins
mandados publicar pelo Governo eram chamados de boatos officiaes, enquanto que os boatos
derrotistas que corriam pela cidade eram as noticias do Comando em Chefe. A princípio
cheguei a ter discussões com alguns d'aquelles que eu julgava sinceros, discussões estas
que aboli pouco depois. "Com a retirada dos revoltosos de São Paulo, e as
manifestações de regosijo havidas, uns se recolheram e outros augmentaram o seu
despeito. Diante desses factos eu julguei que deveria andar melhor informado sobre os
ânimos, e verifiquei que, na Flotilha, mais de metade dos Officiaes era sympathica aos
revoltosos, e que seria capaz de tomar parte em algum movimento. Troquei impressões a
esse respeito com o meu Immediato, com o Commandante Mario Hecksher e com o Assistente da
Flotilha. Verificando depois que, apezar do fracasso de S. Paulo, não arrefecia o animo
revoltoso na Flotilha, resolvi para não me confundir com os mesmos, agir claramente e
abertamente. Passei, nas minhas preleções a fallar sobre taes assumptos e, resolvi
fallar ao Commandante da Flotilha sobre providencias que, ao meu vêr, deveriam ser
tomadas. Para isso, em dia que, infelizmente não me recordo, dirigi-me à câmara e ahi
se achavam o Commandante da Flotilha, o Immediato, o Assistente e o Ajudante de Ordens.
Dado ao Commandante da Flotilha o conhecimento do que o interessava a respeito do F-3,
submersível ao meu Commando, levei a conversa para o assumpto da revolta, e os boatos que
corriam. Disse então ao Commandante que não pensava que os animos na Flotilha estivessem
tão propensos para o lado revoltoso, que eram muitos os Officiaes que sympathizavam com
elles, alguns com cargo de confiança; que, si fosse o Commandante da Flotilha tratava de
afastá-los da Flotilha. Não sei quaes foram as providencias tomadas; notei, entretanto,
que os ânimos estavam cada vez mais exaltados."(15)
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Esclareceu-nos anos mais tarde Aldo Sá Britto de
Souza, Imediato do F-5, e convicto revolucionário, como foi conseguida a adesão do
pessoal subalterno, suboficiais, sargentos, cabos e marinheiros, indispensável para
permitir a movimentação dos pequenos submersíveis. Deixou claro que a liderança
exercida pelo comandante constituíra o mais importante fator de convencimento:
"Do commandante ao ultimo grumete a
guarnição é um bloco homogêneo que vale o que vale o commandante. No mar o contacto é
incessante, intimo. Em um submarino o pensamento do chefe é o pensamento de todos; juntos
arriscam a vida, compartilham dos sacrifícios e penosos trabalhos, usufruem em commum os
laureis das victorias, o que forja entre commandante e commandados os elos de uma cadeia
de amizade e confiança recíproca.
Esta é a melhor das disciplinas, a verdadeira, a
única, a estavel. Tem alicerces fundos, cavados nas mais nobres qualidades da alma, é
acceita, é querida, sentida e não falsamente sustentada ao temor do castigo, ou como
outrora, pelo estalar da chibata.
Era, portanto, dentro da disciplina que os
indisciplinados tenentes iam levar os seus subordinados a apontarem as armas contra o
falaz tabu da autoridade constituída.
Dentro da disciplina porque não era preciso
alliciar, seduzir nem corromper para que fizéssemos cumprir as nossas ordens,
desobedecendo nós as ordens superiores."(16:1)
Para Aché, a tentativa de angariar novos adeptos
acarretava, às vezes, situações surpreendentes, e que se não resultavam em
conseqüências dramáticas, era devido à camaradagem existente na Praça D´Armas:
"Porque nós não sabíamos, exatamente,
quais os que estavam de um lado, ou de outro. Eu cheguei ao Reis16,
e perguntei a ele:
- O negócio seguinte, é mesmo ?
Ele olhou para mim e disse:
- Olha Aché, eu sou do outro lado!" (17)
Segunda feira, dia 20 de outubro, a rotina no Tênder
Ceará seguia o seu curso normal. Navio fundeado ao NW da Ilha das Cobras com amarração
fixa do Arsenal, prancha passada para terra pela popeta de boreste, tendo atracado a
bombordo os F-3 e F-5 e a boreste o F-1. Paus de surriola disparados. Energia elétrica
fornecida pela usina da ilha. Toldos nos vergueiros. O mar estava calmo e o céu encoberto
anunciava chuva.
Os licenciados regressaram como de costume, e
dedicaram-se aos seu afazeres diários. Durante o expediente os conspiradores foram
informados de que o levante estava marcado para às duas horas da madrugada seguinte,
vinte e um, faltando as instruções finais, mas que estavam por chegar. Estas, porém,
não sendo recebidas, cumpriu-se o horário de licenciados, e oficiais e praças baixaram
à terra às dezesseis horas e meia.
Finalmente quando chegaram as instruções, o
Primeiro-tenente Aldo Sá Brito de Souza comunicou ao Contra Mestre Luiz Avelino Pedreira
que a rebelião irromperia na madrugada imediata, ordenando-lhe que mandasse chamar nas
respectivas residências determinados oficiais da Flotilha, e que fosse, ele mesmo, a
terra, buscar as praças que guarneciam os submersíveis.
O Contra Mestre Pedreira, que já prevenira as
praças ao serem licenciadas, de que deveriam encontrar-se na Estação da Central do
Brasil, às dezenove horas desse mesmo dia, para saberem se deviam ou não voltar para
bordo, para lá se dirigiu, a fim de dar cumprimento às ordens que recebera do Tenente
Aldo. Ali chegando providenciou que seguissem imediatamente para a Flotilha os marinheiros
do F-1 e do F-5.
Voltando logo em seguida para bordo, chamou o
cabo Nicomedes Moraes de Andrade, ao qual transmitiu ordem dos Capitães-tenentes Mario de
Azeredo Coutinho e Nelson Simas de Souza (e que para isso supriram a importância de cento
e dezenove mil réis), de que fosse à casa dos Capitães-Tenentes Attila Monteiro Aché e
Candido de Azeredo Coutinho, chamando-os para bordo. Nicomedes, porem, ao chegar nas
residências, foi informado de que os oficiais já tinham saído. Regressando, e dando
conta do resultado da sua missão, foi informado pelo Contra Mestre Pedreira de que os
oficiais que fora chamar, já se encontravam a bordo.
O Domínio da Flotilha
Reunidos então, os conspiradores começaram a
executar as medidas necessárias ao domínio da Flotilha. Com este objetivo o
Capitão-tenente José Brito de Figueiredo fez chamar, às vinte horas e trinta minutos,
ao seu camarote, onde já se encontravam o Capitão-tenente Simas e o Primeiro-tenente
Aldo - o Condutor Eletricista Benedito Amorim dos Santos e o Condutor Motorista Josino
Augusto de Azevedo.[O autor do processo não discrimina os navios] Entregando-lhes 10
tiros de fuzil, mostrou-lhes a seguir uma lista, na qual, ao lado dos seus nomes,
figuravam os dos Subofficiais Erico, Guarino e Dagoberto, que constituiriam o grupo que,
comandado por um oficial, devia prender o Capitão Tenente Fernando Cockrane, logo ao
iniciar o levante. Da mesma forma Brito de Figueiredo procedeu com o Contra-Mestre
Pedreira. Chamando-o ao seu camarote, entregou-lhe munição que ali se achava, juntamente
com o armamento existente no corredor dos arquivos, a bombordo do Ceará, para que fossem
ambos distribuídos às praças que não tivessem revólver nem munição, o que de fato
foi feito.
Ao sair de bordo, Aché fora ao Clube Naval, onde
procurou descobrir se alguém sabia das indigitadas instruções, "pois estava
interessado em conhecê-las", até que, por cerca das nove e meia da noite
"esteve com um amigo que lhe disse já
estarem as instrucções a bordo." (18:20)
De posse dessa informação Aché, logo em
seguida, dirigiu-se para o Ceará e, ao passar pelo Arsenal de Marinha, encontrou-se com o
Assistente da Flotilha, Cockrane, que o convidou a retornar na lancha do Comandante. Aché
recusou alegando que iria pela ponte. Este procedimento soou estranho, pois sendo os dois
muito amigos, era natural que Aché aceitasse o convite. Portanto, o inesperado encontro
levantou suspeitas. Cockrane aguardava Castro e Silva que estava no gabinete do Ministro
Alexandrino, e ficou intrigado com a presença de Aché àquela hora, depois do expediente
e, mais ainda, pela explicação que dele recebera - de que regressava para bordo naquela
tardia hora da noite "por ter sabido que havia prontidão na Marinha."
Ora, Cockrane, que pela natureza da sua função
deveria sabê-lo, desconhecia o fato. Comentou o ocorrido com o Ajudante de Ordens,
Aristides Garnier, que, por sua vez, acrescentou que vira Aldo Sá Britto de Souza
caminhando para bordo. Aumentaram-se, assim, as suspeitas, não só pelo regresso
inusitado dos oficiais, já tidos como possíveis conspiradores, mas também pela
estapafúrdia alegação de "prontidão". Ato contínuo, Cockrane alertou Castro
e Silva do que se passava, e este, antes de retornar, encarregou seu Ajudante de Ordens de
chamar os oficiais do seu Estado Maior, pelo telefone do Arsenal, para que regressassem
prontamente para bordo.
Aché, por sua vez, comunicou aos demais
conspiradores o imprevisto encontro com Cockrane, expressando-se que fora
"pilhado" pelo Assistente. Estes, desconfiados, permaneceram na desconfortável
expectativa de uma possível descoberta do movimento. Eram eles: José Brito de
Figueiredo, Mario de Azeredo Coutinho, Nelson Simas de Souza, Ary Parreiras, Aldo Sá
Brito de Souza, Benjamin Gonçalves da Costa; os Sub-Oficiais Vicente Guarino, Benedicto
Amorim dos Santos, Josino Augusto de Azevedo, Luiz Avelino Pedreira, Freire Fontes, Erico
de Souza Lacerda, Armando de Souza Gomes, Dagoberto de Miranda, Dyonisio dos Santos e
Cicero Pinheiro de Mattos e os Sargentos Manoel Gonzaga e Ernesto Fernandes da Silva.
Castro e Silva, ao voltar de terra, nada observou
de anormal no Ceará, e chamou o oficial de serviço, 1º Tenente Ary Parreiras,
perguntando-lhe quais os oficiais que estavam a bordo. Parreiras informou-lhe que eram o
oficial de serviço nos submersíveis, Capitão-tenente Edgard de Oliveira, o encarregado
do Pessoal, Capitão-tenente José Brito de Figueiredo e Aché, que acabara de chegar.
Como o nome de Aldo Sá Brito de Souza não foi
mencionado, e sabedor da sua movimentação, Castro e Silva desconfiou, também, de
Parreiras.
Ele sabia, ademais, que Azeredo Coutinho
"estava dispensado de comparecer a bordo naquele dia", mas, mesmo assim, ordenou
a Cockrane que telefonasse para a sua residência. De lá informaram que "ele devia
se encontrar a bordo". Pouco depois Azeredo Coutinho entrou na câmara, explicando
que "tinha vindo para bordo em razão do exercício marcado para o dia seguinte, e
que não se apresentara ao oficial de quarto porque havia chegado muito cansado do seu
sítio no Estado do Rio." (19:38)
Em torno de Castro e Silva já se encontravam
Cockrane, Garnier, Jorge Leite, Mattoso Maia e Hecksher, do seu Estado Maior. Este grupo
inicial foi aos poucos se ampliando, com a chegada de mais oficiais como os comandantes
dos submersíveis, sendo Pinto Lima o último, por volta das onze e meia.
À meia noite Castro e Silva alterou a escala de
serviço, mandando que seu Ajudante de Ordens, Aristides Garnier, substituísse Ary
Parreiras no quarto de zero às quatro. Como precaução adicional, encarregou Cockrane de
percorrer o navio, inspecionando-o quanto à possíveis anormalidades.
Pinto Lima, ao se retirar da câmara, aí por
volta da uma hora da madrugada de vinte e um, foi procurado por Cockrane, que o avisou
para permanecer alerta, pois Attila Aché e Aldo de Sá Brito tinham vindo para bordo sob
alegações que lhe pareceram pouco convincentes.
Com exceção da guarnição do F-3, que após o
licenciamento não fora chamada de volta, estavam presentes todos os integrantes da
Flotilha, legalistas e conspiradores, uns com mais certeza, outros com menos, na
expectativa de que o relógio marcasse duas horas e que fosse ouvida a salva de vinte e um
tiros que deflagraria o início da revolução. Nesta ocasião deveriam ser empreendidas
ações, tomadas medidas e, principalmente, assumidas posições.
Em ambiente de convívio intenso e objetivos
comuns, talvez a providência mais difícil ou desagradável fosse a prisão de colegas,
que eram, além de tudo, amigos. Este assunto já vinha sendo discutido, mas sem chegar a
uma conclusão definitiva. Para prender Cockrane fora organizada uma relação contendo os
nomes dos Suboficiais e Sargentos participantes, mas sem a indicação do oficial que a
chefiaria. E assim permaneceu até as oito e meia da noite, quando Brito de Figueiredo
entregou tal relação ao Condutor Eletricista Benedicto.
Para a prisão dos outros legalistas, a
situação era idêntica: inexistia indicação do oficial responsável.
Aché, quando reunira-se com os demais
participantes para avisá-los de que fora "pilhado" por Cockrane, "recebeu
de um deles a comunicação de ter sido escalado para prender, no momento do levante, o
Capitão-tenente Assistente da Flotilha". Coerente com a posição que já assumira,
Aché manteve-se inflexível:
" - Como da vez anterior, declarei que tal
não o faria por ser muito seu amigo." (20:20)
Em outro depoimento, anos mais tarde, ao
referir-se a este episódio, Aché acrescentou mais detalhes, esclarecendo qual a nova
solução encontrada para o complicado problema:
" - Eu cheguei a bordo, nós combinamos que,
quem não aderisse, nós dávamos uma xeroca neles, para eles perderem os sentidos,
um clorofórmio, que era justamente para que eles não tivessem uma reação contra nós,
e não houvesse da parte de quem quer seja a oportunidade de atirar e matar o companheiro,
e assim nós fizemos." (21)
Esta alteração nas ordens que já tinham sido
dadas, desacompanhada do correspondente esclarecimento, provocou reações de desalento
entre os Suboficiais e Sargentos que participariam das detenções.
Mais ainda, o Suboficial Josino, ao indagar de
Brito de Figueiredo qual o oficial que lhe acompanharia na detenção de Cockrane, não
obteve resposta.
Em outra tentativa, quando vários oficiais
estavam reunidos, foi informado que aguardavam a chegada do Comandante da Flotilha.
Como este regressasse e nada acontecera, Josino
retirou-se para o seu camarote, não sem antes comunicar aos colegas que se desligava do
movimento revoltoso por julgá-lo em condições precárias. Para Josino, a participação
dos oficiais era fundamental, e como entendera de que isto não aconteceria, decidira não
mais tomar parte na rebelião.
O mesmo aconteceu com o Condutor Benedicto Amorim
dos Santos. Incumbido de participar da prisão do Capitão-tenente Jorge Leite, indagou a
Brito de Figueiredo qual o oficial que o acompanharia. Não obtendo resposta conclusiva,
comunicou aos seus colegas que abandonava o movimento.
À uma hora da madrugada Azeredo Coutinho chamou
o Contra Mestre Pedreira, que fazia a intermediação entre os oficiais e a guarnição, e
ordenou-lhe que, sem fazer ruído, mandasse as guarnições do F-1 e F-5 para bordo dos
respectivos submersíveis, providência que foi prontamente efetivada.
A rotina de preparar para suspender foi cumprida,
e em especial foram montadas cabeças de combate nos torpedos, pois os submersíveis
deviam se deslocar para as proximidades dos encouraçados e forçar a adesão dos navios
indecisos ou recalcitrantes.
Enquanto aguardavam o sinal convencionado, os
Suboficiais Luiz Avelino Pedreira, Dagoberto de Miranda, Cícero Pinheiro de Mattos e
Armando de Souza Gouvêa combinaram prender no compartimento dos acumuladores os colegas
que se recusassem a aderir ao movimento.
As guarnições do F-1 e F-5, por terem sido
chamadas para regresso em horário fora de expediente normal, motivaram alterações na
rotina de bordo que dificilmente passariam desapercebida pelo oficial de quarto e
contramestre do horário. O trânsito atípico, pela prancha passada para terra, dos
licenciados que regressavam, o maior afluxo de marinheiros ao rancho noturno, o desusado
número de macas ocupadas nas cobertas, não poderiam, de forma alguma, passar
desapercebidos ao pessoal de serviço. Até meia noite, o quarto fora exercido por
simpatizantes da conspiração, o que de certa forma poderia explicar porque tais
indícios não tivessem sido comunicados à Castro e Silva.
No entanto, fica sem explicação plausível o
fato de que, mais tarde, quarenta e duas praças fossem despertadas, deixassem seus
alojamentos cobertas abaixo, subissem ao convés, transitando, metade para boreste em
direção ao F-1, e a outra metade para o F-5, atracado a bombordo, e novamente esta
movimentação passasse desapercebida.
O quarto, nesta ocasião, era exercido pelo
Ajudante de Ordens de Castro e Silva que, do seu posto no portaló, tinha perfeita visão
dos acessos aos submersíveis, além de estar perfeitamente alertado para a possibilidade
de acontecerem fatos anormais. Reforçando a vigilância exercida por Aristides Garnier,
Cockrane, com a mesma finalidade, percorria o navio inspecionando-o.
Por seu turno, na expectativa dos acontecimentos,
reuniam-se na popeta de boreste o Primeiro-tenente Aldo Sá Brito de Souza, os
Capitães-tenentes Comissário Candido de Lobato de Azeredo Coutinho, José Brito de
Figueiredo, Edgard Paula de Oliveira, Nelson Simas de Souza e Mario de Azeredo Coutinho.
De onde estavam era possível serem avistadas, na direção de Niterói, as luzes dos
encouraçados fundeados no poço. Chovia intensamente, contudo, sem constituir impedimento
para que o clarão e o estrondo de uma salva de vinte e um tiros, ansiosamente esperada,
não fosse facilmente reconhecidos. Azeredo Coutinho recomendara que, uma vez recebida o
sinal, cada qual procurasse o posto acertado e cumprissem as missões planejadas: prender
os oficias legalistas, a iniciar por Castro e Silva, suspender com os F-1 e F-5 e tomar o
comando do F-3 e do Ceará.
Aché nos relata o que se passou após os
submersíveis terem sido guarnecidos e a esperada salva não ter acontecido:
" - Ficamos revoltados a noite inteira.
Quando estava clareando o dia um marinheiro apareceu lá a bordo, dizendo que o comandante
Protogenes tinha sido preso com outros oficiais, e que não ia haver a revolta.
Então nós nos desrevoltamos: tiramos as
cabeças de combate, botamos as cabeças de exercício, mandamos todo o mundo para as
macas, de maneira que quando tocou faxina não havia o menor traço de que a Flotilha
tinha estado revoltada." (22)
As Novas Tentativas
Não se tendo ouvido o sinal convencionado,
Azeredo Coutinho ordenou ao Contra Mestre Pedreira que fizesse regressar para bordo do
Ceará, mais uma vez sem ruído, as guarnições do F-1 e F-5, o que foi prontamente
cumprido.
A beira do deslanche, mesmo depois de tomadas
todas as providencias combinadas, deixou, entretanto, de chegar às vias de fato a
Flotilha, em razão do cumprimento da ordem de só iniciar o levante após ter ouvido a
salva de 21 tiros, queimada* por um dos encouraçados.
A prisão de Protógenes e o conseqüente malogro
do levante não desanimou, contudo, os conspiradores. Pelo contrário, serviu de pretexto
para mais profundamente motivarem a guarnição. Azeredo Coutinho e Aldo Sá Brito de
Souza disseminaram que o governo estava prendendo oficiais, impondo-se, portanto, uma
reação. Propalaram, ainda, no seio das praças da Flotilha, que o Comandante Protógenes
fora espancado pela Polícia, assertiva essa reforçada por Simas de Souza que lhe
atribuía como razão o fato de que se buscava, por todos os meios, desmoralizar a
Marinha. Esta, em conseqüência deveria reagir, a fim de restaurar, perante o país, o
seu prestígio abalado.
Assim persistiram os revoltosos, mantendo acesa a
chama de levar avante os planos contra o Governo. Combinaram, então, para a madrugada de
23 seguinte, a irrupção de novo levante. Renovadas as mesmas providências do dia 20,
por ordem de Azeredo Coutinho, mais uma vez abortou a deflagração do movimento, pela
mesma razão, o estrito cumprimento à determinação de que ele só seria iniciado após
o sinal convencionado, que seria originado no encouraçado São Paulo, e que mais uma vez
falhou.
Apesar daqueles repetidos insucessos, os
esforços não cessaram. Os contínuos fracassos foram atribuídos, pelos revoltosos, à
intensa vigilância que as autoridades navais, e a Policia do Marechal Fontoura, vinham
mantendo sobre os oficiais suspeitos.
Para contorná-la, mesmo que com razoável grau
de incerteza, ficou atribuída à guarnição a iniciativa do novo movimento na Flotilha,
o qual se daria na noite de 24 para 25, simultaneamente com outros que, na mesma data,
eclodiriam em navios da Esquadra. Os oficiais chegariam a seguir e assumiriam a chefia do
movimento.
Na sexta-feira, 24, ao ir para
bordo, Aché encontrou no Arsenal um oficial que lhe disse "ter ouvido um zum-zum de
que as guarnições da Flotilha, do Rio Grande do Norte e do São Paulo se revoltariam de
madrugada, com ou sem oficiais ...".(23)
Em sua memória repassaram as imagens de vinte e
dois de novembro de 1910, quando João Cândido chefiou a revolta dos marinheiros. Naquela
ocasião, tinha o posto de Guarda Marinha e servia no Minas Geraes. O acaso reservou-lhe a
fortuna de baixar terra na condução das dezoito horas, a última, duas horas antes que o
encouraçado passasse ao domínio da guarnição sublevada.
Diferente de seus colegas da Flotilha, que
recusavam a possibilidade do reviver daqueles fatos, Aché agiu segundo o seu
entendimento:
"Voltei imediatamente para a casa de meu
pai, a quem relatei o ocorrido, dizendo-lhe que olhasse pelos meus, pois seguiria
imediatamente para bordo, com o firme propósito de impedir, por qualquer modo, o
movimento, mesmo que tivesse de sacrificar a minha vida." (23:29)
Com tempo chuvoso, céu encoberto, e mar calmo, o
Ceará permanecia fundeado e com amarração fixa do arsenal. Toldos abarracados,
artilharia coberta, paus de surriola disparados, a lancha do chefe arriada.
Com a Flotilha em regime de semi-prontidão,
metade da oficialidade estava de pernoite, entre eles o Imediato Elisiário Barbosa, Pinto
Lima e os oficiais de serviço. Dos conspiradores, só Aché e Benjamin da Costa
permaneceram a bordo depois da licença.
O primeiro, pela razão linhas atrás exposta,
enquanto que o segundo, por estar de serviço no horário das doze às dezoito horas.
Azeredo Coutinho, Aldo Sá Brito, Edgard Paula de Oliveira, Candido Lobato, Nelson Simas e
Ary Parreiras estavam em terra, provavelmente para dar continuidade ao planejado. Uma vez
iniciado o levante, certamente regressariam para assumir a chefia.
A expressiva presença de oficiais governistas na
noite de vinte e quatro para vinte e cinco, e a ausência dos conspiradores nesta mesma
ocasião, pode ter sido a razão para que, só então fosse denunciada a conspiração.
Sem a presença dos Comandantes dos F-1 e F-5, principalmente, a parcela governista da
guarnição sentiu-se em melhores condições para levar ao conhecimento de Pinto Lima, o
que sabia.
Desse modo, às seis horas da noite, o Condutor
Emilio Leite Sampaio, que servia no F-3, foi procurá-lo, perguntando se ele tivera
conhecimento da ocorrência de alguma anormalidade. Face a negativa de Pinto Lima, Emilio
Leite Sampaio participou-lhe que acabara de tomar ciência de um fato que reputara como de
maior gravidade - naquela noite deveria acontecer o levante na Flotilha, do qual
participaria, também, o Rio Grande do Norte.
Pinto Lima dirigiu-se, imediatamente, ao Imediato
Elisiário Barbosa, transmitindo-lhe o que acabara de saber, propiciando que, com
urgência, fossem tomadas providências que a situação requeria.
Decorrida meia hora, nova denúncia lhe foi
trazida, desta vez pelo Cabo Francisco Gomes de Assis, confirmando que o levante
irromperia naquela noite, e acrescentando o fato novo da participação do São
Paulo.(24:5)
***
Ainda que interrompendo o fio da meada,
parece-nos oportuno mencionar o fato de que Castro e Silva, desde o início de outubro,
tinha conhecimento de informações que relacionavam diretamente a Flotilha à
Conspiração Protógenes. Na primeira semana daquele mês alertara a Pinto Lima de que
"os perturbadores da ordem tinham voltado as
suas vistas para a Flotilha e que, por isso deveria estar prevenido."(24:3)
Preventivamente, o comandante do F-3 adotou,
então, a prática de fazer freqüentes doutrinações a sua guarnição, alertando-os
para que não se deixassem envolver pela retórica revolucionária.
Passados cerca de quinze dias, no domingo,
dezenove de outubro, Castro e Silva mandou o Capitão-tenente Jorge do Paço Mattoso Maia
chamar Pinto Lima, e o colocou a par de ocorrências suspeitas havidas no São Paulo, e de
duas importantes medidas que mandara implantar: a primeira, a de armazenar as cabeças de
combate nos cabides existentes nos próprios submersíveis, sem, contudo, ligá-las aos
torpedos; e a segunda, a de movimentar-se para a doca do Lloyd, quando do aprestamento do
F-3 para a ação.(25:4)
As recomendações feitas por Castro e Silva, a
Pinto Lima, levam a crer que o Comandante da Flotilha estava inteirado da gravidade da
situação, admitindo, inclusive, a possibilidade de que o levante contasse com a
participação de unidades suas subordinadas. Armazenar as cabeças de combate não mais
no Ceará, e sim nos submersíveis, de modo a reduzir o tempo necessário ao preparo dos
torpedos, evidenciava que os FFs deveriam aprestar-se para operar no menor tempo
possível. E daí, decorrer a intenção de que seriam empregados contra navios da
esquadra, provavelmente os encouraçados.
A prisão de Protógenes, em dependências
situadas na rua do Acre, e às duas malogradas tentativas de levante, nos dias vinte e um
e vinte e três, nas quais participaram grande número de oficiais e praças, já, por si
só, deveriam constituir preocupante motivo de alarme. Porém, o fato é que sequer
redundaram em apurações, fossem sindicâncias ou inquéritos, que, se instalados,
levantariam razoável quantidade de informações. Castro e Silva, que acumulava o Comando
da Flotilha com o do tênder Ceará, procedeu como se delas nada soubesse, ou não
apresentassem importância. Semelhante observação é, igualmente, feita pelo Juiz
Federal Dr. Olympio de Sá e Albuquerque, ao referir-se à atuação de Castro e Silva,
Cockrane e Aristides Garnier, na noite de vinte para a madrugada de vinte e um, quando:
"Vieram para bordo prevenidos por causa de
boatos de que naquella noite haveria uma revolta na esquadra, estiveram toda a noite
acordados e vigilantes, e é extraordinário que não tivessem visto coisa alguma de
anormal. O tenente Garnier foi escalado para o quarto de meia noite ás quatro horas da
manhã, o capitão-tenente Cockrane declarou ter percorrido por mais de uma vez o navio, e
em nenhuma dellas notou cousa alguma de anormal." (26:153)
***
Mas, voltemos ao desenrolar dos fatos.
Cientificado por Pinto Lima, Elisiário Barbosa, Imediato do Ceará, agiu com presteza.
Colocou à disposição do oficial de serviço, Christinnianno Aranha, vinte carabinas e
um cunhete de munição, que ficavam guardadas próxima à sala de estado. A chave do
paiol de munição foi retirada do quadro e entregue ao mesmo oficial. Comunicou, em
seguida, a Castro e Silva, que se encontrava em terra, as denúncias que recebera, bem com
as providências que já adotara.
Às nove horas da noite de 24
Castro e Silva telefonou para Cockrane, ordenando-lhe que "fosse imediatamente
encontra-lo no Arsenal". Neste local comunicou ao Assistente o que se passava a
bordo, enfatizando a denúncia recebida por Pinto Lima, aduzindo, também, que as
primeiras prisões de praças já haviam sido feitas. Sem confiança na guarnição e
inseguro quanto à real dimensão da conspiração, Castro e Silva requisitara um
contingente do Batalhão Naval para fazer a segurança do Ceará, o qual chegou a bordo do
tênder às nove horas, composto por uma força de quarenta homens, comandada pelo
Capitão-tenente Correia da Rocha, com a instrução de ocupar militarmente o navio.
Dando prosseguimento às medida que julgou
inadiáveis, Elisiário Barbosa reuniu a guarnição na popa e anunciou os nomes de
praças acusadas de tentar revoltar o navio, já como primeiro resultado das denúncias
formuladas a Pinto Lima. Ato contínuo, elas foram presas, e enviadas escoltadas para o
quartel do Batalhão Naval.
Pouco depois chegou, a bordo, Castro e Silva, o
qual ordenou, imediatamente, reunir a guarnição. A ela se dirigiu, então, exortando a
todos que se mantivessem no cumprimento dos seus deveres.
Para consolidar o domínio da situação, os
fuzileiros navais foram distribuídos em postos de sentinelas por todo o navio. Como
medida de segurança complementar, após o toque de silêncio, foi alterado o local de
repouso do pessoal subalterno, ficando a guarnição acomodada na proa, ao invés de nos
alojamentos situados cobertas a baixo, o que proporcionou maior visibilidade e
vigilância, ao oficial de serviço. À meia noite Christinnianno Aranha passou o serviço
ao 1º Tenente Guilherme da Motta, finalizando a escrituração do Livro de Quarto com a
substituição da usual expressão Sem Mais Novidades pela Sem Mais Occorrencias.(27)
O tempo continuava chuvoso, e a vigilância
rigorosa. A lancha do Ministro da Marinha atracou, às zero horas e quarenta e cinco
minutos, no tênder Ceará. Castro e Silva foi ao encontro de Alexandrino, que não subiu
a bordo, tendo os dois conferenciado por cerca de cinco minutos. Uma vez inteirado do
sucedido, das medidas adotadas, e de que a situação no navio estava controlada, o
Ministro mandou sua lancha suspender em direção ao São Paulo, rumando a seguir para o
Ministério.
Por ordem de Castro e Silva, Cockrane deslocou-se
para o Batalhão Naval, a fim de interrogar as praças já detidas, e coletar
informações que permitissem identificar e prender os demais participantes. Esta faina
ocupou-o por dois dias, ainda que auxiliado por outro oficial de bordo, tal o vulto das
inquirições, cujos resultados envolviam expressivo número de oficiais e praças. Ainda
no período de zero às quatro horas continuaram as detenções, sendo mais sete
marinheiros recolhidos presos ao Batalhão Naval. Guilherme Motta finalizou a
escrituração do livro de quarto com a expressão usual - Sem Mais Novidades.(28)
Algumas denúncias foram levadas diretamente a
Castro e Silva, que em minucioso ofício relata como lhe chegaram:
"Às sete horas e vinte e cinco minutos fui
procurado por um suboficial em estado de grave excitação nervosa, que disse:
- Estamos todos perdidos - acrescentando que
entre os suboficiais que supúnhamos fiéis, havia um bom número filiado ao movimento que
deveria ter arrebentado, existindo alguns violentíssimos e dispostos a praticar os atos
mais bárbaros. E que se quizesse tomar maiores informações, que ouvisse os suboficiais
José Espíndola, Raul Lourenço e Ildefonso Coimbra." (29:42)
Continuou Castro e Silva:
"Mandei chamá-los e eles disseram coisas de
tal gravidade que, impossibilitado de ouvi-los longamente, devido às várias
providências que continuadamente tinha de tomar, designei o Capitão-de-Corveta Mario
Hescksher e o Capitão-Tenente Jorge do Paço Mattoso Maia para ouvi-los e tomar os nomes
dos que fossem citados como os mais violentos e exaltados." (29)
E, de fato, Hecksher e Mattoso Maia anotaram os
nomes dos novos acusados, em número de oito, todos Suboficiais e Condutores: Erico de
Souza Lacerda, Josino Augusto de Azevedo, Armando de Souza Gouvêa, Benedicto Amorim dos
Santos, Dagoberto de Miranda, Dyonisio dos Santos, Freire Fontes e Vicente Guarino.
Castro e Silva concluiu seu ofício com a
decisão que tomara:
"Resolvi, então, esperando a chegada dos
suboficiais de terra, que ainda se achavam licenciados, reuni-los e efetuar a prisão dos
indicados. Assim o fiz." (29)
A denúncia que enfatizava a periculosidade dos
oitos suboficiais, acusados de violência e exaltação, perdia coerência no fato desses
militares se encontrarem em terra, como citado por Castro e Silva ao final de seu ofício.
Deste modo, não poderiam participar da tentativa de levante da noite de vinte e quatro
para a madrugada de vinte e cinco.
Sendo preocupante a indefinição quanto à
lealdade da guarnição, foram presos e recolhidos ao Batalhão Naval os licenciados dos
submersíveis F-1 e F-5, logo que regressaram para bordo, no quarto das quatro às oito
horas. Para o oficial de serviço Benjamin da Costa, no entretanto, seu quarto encerrou-se
com a usual expressão - Sem Mais Novidades.(30)
Enquanto isso, Castro e Silva aguardava o
regresso dos Suboficiais denunciados, para prendê-los. Ao chegarem a bordo na condução
de licenciados os oitos foram imediatamente detidos e encaminhados ao Batalhão Naval,
ficando à disposição de Cockrane. No tênder era ampliada para sessenta praças a
guarda de navais, e de um, para dois oficiais. Ainda visando reforçar as medidas de
segurança, iniciou-se, às quinze horas, regime de prontidão rigorosa para os oficiais,
e meia prontidão para o pessoal subalterno.
As prisões das praças prosseguiram, terminando
no dia seguinte, vinte e seis, às oito da manhã.
As denúncias, mais as apurações feitas por
Hecksher, Cockrane e Mattoso Maia, identificaram diversos oficiais que participariam da
conspiração. Alexandrino, sem perda de tempo, comunicou-se diretamente com Bernardes,
informando-lhe das prisões que iria ordenar, como resultante
"dos depoimentos das praças presas hontem
á noite: Aché, Azeredo Coutinho, Simas de Souza, Edgard de Oliveira, Aldo Sá Brito de
Souza e Ary Parreiras."(31)
O Ministro tinha motivos para um relacionamento
incomum com Aché, pois quando aspirante, fora aluno do seu avô, que era lente
catedrático de Matemática da Escola Naval. Considerando esta lembrança, mandou que
trouxessem Aché a sua presença, pois desejava falar-lhe.
O que se passou então, foi relatado pelo
próprio Aché, com minúcias, e a jovialidade característica:
"O Hecksher me acompanhou até lá ao
gabinete. Então ele [Alexandrino] virou-se para mim e disse assim:
- Sim senhor, seu Aché. O senhor que era um
menino tão bonzinho, que se portou tão bem em Sergipe, vai trair os seus amigos, aliciar
praças e tudo isso?
Eu digo: - Olha Almirante, eu não traí amigo
nenhum, não aliciei um homem, porque nunca procurei nenhum deles para convidar para a
revolução, ou dizer que estava na revolução ou não estava. Eu nunca fiz isso. Agora
se o senhor dissesse que eu estava metido na revolução, eu diria ao senhor que estava
mesmo!
- Ah! Estava?
- Estava sim senhor!
- Corpo de Fuzileiros, sentinela a vista e o diabo!" (32)
(PARTE FINAL NO PRÓXIMO NÚMERO)
O ATAQUE IMPOSSÍVEL
ANALISANDO A PARTICIPAÇÃO DA FLOTILHA
PALAVRAS FINAIS
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