IÇA O DOIS!

E Daí?

VAlte (Ref) Ruy Capetti  Exemplar 18               Jan/Fev/Mar 2006
 

          Talvez este texto seja o que maior dificuldades venha se me apresentando para redigir. São idéias que me vêm à cabeça, encadeadas logicamente e perfeitamente claras, sempre pelas madrugadas, nos entre-sonos comuns nessas horas do dia, para pessoas de mais idade, com é o meu caso.

            O fato é que, quando pego a caneta para registrá-las, elas se embaralham, perdem a seqüência lógica, desafiam com mais perguntas, enfim, se tornam quase impossíveis de registro escrito, quando estou acordado. Por isso o texto que se segue pode não ter a força que lhe gostaria de atribuir.

            E por  que este aparente descompasso entre o "brain storming" e a hora do registro no papel? Talvez porque tais idéias tenham que ser muito bem trabalhadas, bem concatenadas e, acima de tudo muito bem fundamentadas para, quando expostas, não parecem meras críticas e desmerecerem as atividades a que se referem.

            Este texto poderia se intitular "Fazemos parte do seleto grupo ...", ou "Fomos preparados, e muito bem preparados, para isso!", entre outros títulos, mas  o que mais espontaneamente me veio à cabeça, foi o que adotei como título: "E Daí?".

            O que principalmente buscamos pelo texto é chamar a atenção dos dos nossos companheiros de profissão, mormente aqueles que estão ainda no serviço ativo, de que existem muitas oportunidades de aprimoramento na instituição militar naval.

            Não temos a menor dúvida de que os oficiais de marinha têm consciência disso, mas o fato é que, na ativa, nem sempre o tempo é propício o bastante para permitir levantar e implementar  novas idéias. Tanto é que os altos escalões navais atribuem esse garimpo por novas idéias aos cursos das escolas profissionais, cujos currículos estão para ratificar tal assertiva.

            É dada a oportunidade, portanto, aos que estão na reserva, ou reformados, e não sublimaram a Marinha, aprofundarem estudos e discutirem publicamente novos conceitos, sejam políticos, estratégicos, táticos ou logísticos, de modo a apresentá-los à totalidade de leitores profissionais navais e permitir que esses aprofundem conhecimentos, para, finalmente, os aplicar no cotidiano do serviço, como julgarem conveniente

            Neste momento o foco da abordagem é sobre a sistemática de definição de novos meios navais necessários ao curso das atividades bélicas nas quais a MB poderá ser chamada a engajar, principalmente depois que foram identificados no processo de definição que se pratica na MB – na fase conhecida como CENAV.

            Queremos deixar bem claro os limites dessa abordagem, considerando que o processo completo de definição do material de emprego militar (meios de guerra) é muito longo e passa por anos a fio (dez, ou mais), por avaliações e re-avaliações, das quais resultam constantes evoluções, mormente em face do avanço tecnológico sempre presente.       Além de ser um longo processo, a discussão sobre material de emprego militar se desenrola por diversos cenários. Vejamos, a seguir, quais são os foros dessa discussão.

            Se considerarmos a engenhosidade mental dos conhecedores do assunto, podemos observar que em primeiro lugar vem os ESTRATEGISTAS que, com observações, considerações e análises do que está ocorrendo no mundo, definem ameaças e sugerem necessidades. Seguem-se os CONCEBEDORES, engenhosas mentes que delineiam diversas soluções para as ameaças e necessidades levantadas no estágio anterior, e produzem elementos que permitem os estudos de exeqüibilidade que se seguirão, invariavelmente, a fim de limitar as soluções às capacidades tecnológicas, aos recursos das mais variadas naturezas e às limitações impostas a cada um dos atores interessados. Esses dois foros de discussão mencionados recaem na área que conhecemos normalmente como de Pesquisa e Desenvolvimento.

            Chega, finalmente, o momento de serem materializados meios de guerra para fazer face às necessidades levantadas, decisão que caberá aos TOMADORES DE DECISÃO  Esses, em função do estágio tecnológico, dos recursos existentes e das restrições impostas (sempre presentes!) e após estudo aprofundados de exeqüibilidade, buscarão a transformação do funcional em físico, chegando à síntese do que se irá obter para atender às necessidades levantadas nos estágios anteriores. O meio físico assim definido irá fazer parte, então, do que nos referimos como PROGRAMA de OBTENÇÃO, ficando finalmente, a cargo dos CONSTRUTORES, obtê-los.

            Embora seja esse o longo processo de definição dos sistemas de armas segundo o qual uma força armada decidirá, em determinado instante, qualsistema de armas que pretende obter, nossa abordagem partirá do ponto de definição, ou síntese, do sistema ou equipamento selecionado até sua obtenção, passando por sua operação e finalmente chegando às atividades de sua eliminação. O texto se limitará, portanto, às atividades de definição dos novos meios, sua síntese e finalmente, sua materialização, num processo, que ocorre de tempos em tempos, ao qual nos referiremos como macro-processo de obtenção

            Embora seqüência da fase de pesquisa e desenvolvimento, que infelizmente não é muito praticada no Brasil, nosso processo de obtenção começa com a identificação de uma necessidade operativa. Como vimos linhas atrás, ele ocorre da identificação de uma ameaça, ou do avanço tecnológica das forças que se nos vão opor, ou do atraso tecnológico a que somos impostos, por várias razões. Dessas, e das mais freqüentes, é a carência de recursos para investir nas atualizações das forças combatentes. Menos freqüente, mas possível, como temos visto na atualidade brasileira, é a falta de visão de governantes despreparados, que teimam em desaparelhar as forças armadas do país.

            Limitados pela abrangência da abordagem, e nos reportando  à experiência naval do processo de obtenção de meios, passamos a tecer considerações do que ocorre na fase de preparação do poder naval, no estágio que conhecemos como CENAV.

            Fazemos breve referência ao nosso processo de definição dos meios navais necessários (referido como preparo e aplicação do poder naval), pois ele é consolidado por uma sistemática que não é muito divulgada a todos os oficiais de Marinha (dela se toma conhecimento anos mais tarde de carreira, como oficial superior). Esta sistemática começa pela AENAV (avaliação estratégica naval), passa pelo CENAV (cenário naval, ocasião em que são definidas as decisões de preparo e emprego do poder naval) e finalmente as DIPNAV (diretrizes diversas para dar curso ao planejamento anterior). São esses os estágios que corporificam o que é referido como Planejamento Estratégico da Marinha (PEM).

            Mencionamos o fato do pouco conhecimento da sistemática, uma vez que julgamos que ela deva ser muito bem disseminada, mesmo para os mais jovens oficiais, para que desde cedo se acostumem a pesquisar  e procurar melhores soluções para o processo, acompanhando o estado dos conhecimentos, contribuindo, com tal atitude, para seu aprimoramento. Tal sistemática deve ser pública (e até o é, embora parcialmente).

            Antes que se levante a crítica dos menos avisados, enfatizamos que o conteúdo dos fundamentos ao Planejamento Estratégico da Marinha, que deve ser do pleno conhecimento e domínio dos altos escalões navais, responsáveis por sua formulação e implementação no ambiente naval, este sim, deve ter elevado grau de sigilo, em face das ameaças e dos riscos que lhes dão origem.

            Por outro lado, temos a convicção de que se a maioria dos oficias de marinha conhecessem a sistemática de planejamento naval, com certeza teriam contribuído, e muito, não para seu aperfeiçoamento, mas até das soluções que produz, a luz da evolução dos conhecimentos na atualidade mundial, principalmente se levarmos em consideração a velocidade de disseminação das informações.

            Um ponto em que podemos mencionar como exemplo do aprimoramento orgânico, é que teriam sido identificadas disciplinas, cuja adoção no Sistema de Ensino da Marinha e abordagem apropriada nos cursos da EGN, contribuiriam, a saciedade, para o desenvolvimento do macro-processo de obtenção dos meios navais. Por seu turno, teriam sido identificados e sistematizados, igualmente, novos processos, ou, não tão novos assim, mas que certamente teriam sido implantados e implementados no campo de conhecimentos de todos os oficiais de marinha, contribuindo, destarte, para o aperfeiçoamento e execução do serviço naval. Lembrando de passagem, citamos o ALI, a Engenharia Logística, a Engenharia de Sistemas, a Gerência de Projetos, a Gestão da Qualidade, entre outros conhecimentos.

            Voltemos, porém, as nossas perple -xidades básicas, com relação à obtenção de meios navais. Mas não sem antes tecermos algumas considerações teóricas sobre as atividades de obtenção de sistemas de defesa.

            Essas atividades são responsáveis pelo dilema referido na literatura especia -lizada como o dilema "canhões x manteiga". Em outras palavras, quanto uma nação deve retirar do seu produto bruto para aplicar em armamento, que garanta sua segurança desejada, mas que o é em detrimento da expressão social do seu povo.

            Sabemos (pode não ser claro para todos) que uma parcela dos recursos do pro- duto bruto têm que ser destinada à seguran- ça. Mas quanto? E se é retirada, definida quantitativamente, serão tais recursos bem aplicados?

            A última questão pode ser elaborada de forma diversa, em nome da clareza  - se é obtido determinado sistema de armas, ele o foi da maneira mais eficiente possível? Representa isto que ele deva ser a última palavra em tecnologia compatível com o horizonte temporal de seu emprego, e de que seja obtido e operado com o menor dispêndio de recursos possível? Ou seja, deve ter ele eficiência militar-econômica à prova de quaisquer questionamentos? (Outros estudiosos se referem à relação custo-eficácia).

            Claro está que essas questões devam ser permanente verificadas pelas instituições apropriadas do país – o Congresso Nacional, por meio de Comissão de Defesa, seria uma delas; o Tribunal de Contas da União, outra. Enfim, seriam usados os mecanismos de que dispõe a sociedade para avaliar os gastos com as Forças Armadas e para evitar desperdícios.     

 

 

 

      É dentro desse caldeirão de idéias que amplio o texto. Para ser mais pontual, específico e por nos permitir ser mais preciso, pelos conhecimentos que temos,  vamos tecer algumas considerações, num estudo de caso atual - a obtenção de submarinos na Marinha do Brasil.

      Embora não aparente ser no ambiente naval brasileiro, como a seguir descrito, a sistemática corrente em vários países de considerável porte militar, que consultamos, parte do estágio de pesquisa e desenvolvimento, mencionado parágrafos atrás, para levantar possíveis soluções funcionais para as necessidades identificadas.      

      Vimos que concomitantemente à identificação de potenciais ameaças, ou vulnerabilidades nossas, os estrategistas vêm indicando, igualmente, tarefas militares a serem cumpridas, para encarar as necessidades identificadas. Desses estudos, então, os concebedores, através de meticulosas pesquisas e desenvolvimentos, criam soluções conceptuais que atendam às necessidades levantadas.[1]

            Em função das características das necessidades os tomadores de decisão, num dado momento, definem uma alternativa, entre várias, a qualserá implementada. O processo descrito leva, normalmente, de 8 a 10 anos, ou mesmo mais, e as avaliações  de exeqüibilidade são sempre imaginadas para um horizonte temporal bem à frente (considera o tempo de definição da configuração, a seleção do meio, sua síntese e o período de construção, até o momento de sua entrada em serviço).

            Fixada a decisão de se obter um determinado meio naval, digamos, a título de exemplo, um submarino ou uma série de submarinos, escolhido dentre vários projetos alternativos, o primeiro da série ou a série passa a fazer parte de um Plano de Construção Naval. Não conhecemos na MB este Plano, embora a Planejamento Estratégico trate do mesmo objeto – a obtenção dos meios navais. Conhecemos, outrossim, o Programa de Reaparelha -mento da Marinha, e entendemos que ele seja o Programa de Obtenção ventilado linhas atrás.

            Chegar a esse ponto indica que muito do caminho foi trilhado. Fixada uma configuração selecionada, chegamos ao ponto de CONSTRUIR.

            Claro que nem sempre o novo submarino é fruto de um projeto de desenvolvimento do mesmo país. Ele pode ser fruto da escolha de um projeto que foi desenvolvido em outros países. O fato é que o memorável esforço de projetar foi ultrapassado, subtraído ao construtor, passando-se a trilhar o caminho da obtenção, por construção, se capacidade tivermos, a partir do projeto existente.

            Este fato nos leva a perceber que nem sempre estaremos escolhendo o projeto da nossa inteira conveniência, tendo que se adaptar ao projeto de origem alienígena.

            Então, é quase construir! Dizemos quase , porque os esforços podem ser grandes no sentido de absorver, adaptar e aprimorar o método de construção, no país. Podem ser implementadas, mesmo, algumas mudanças no projeto inicial, adaptando-o cada vez mais às reais necessidades do país construtor.

            Enquanto construindo, o que requer intensa capacitação tecnológica, acreditamos que deva ser evitado o ufanismo que se consubstancia pela repetição da famosa frase: "Fazemos parte do seleto grupo que constrói submarinos". Declarações desse tipo contêm a mesma volatilidade de outras semelhantes, tais como "Fazemos parte do seleto grupo de tri-campeões mundial de futebol" ou "Fazemos parte do seleto grupo de países com consideráveis reservas de urânio", ou mesmo "Fazemos parte do seleto grupo de países que beneficiam o urânio", entre tantas outras. Fazemos parte. E DAÍ?

            Construir navios, uma complexa atividade de engenharia, faz parte do acervo de conhecimentos de nossos Engenheiros Navais (EN). Portanto, construir submarinos, embora seja esta atividade de construção bem mais complexa, se inclui, também, em seu campo de atribuições. Os EN são formados para atender à construção naval, e nossos EN cumprem suas atribuições básicas com muita competência, sendo, por isso, dignos de todo respeito e admiração. Da mesma forma, nossos Intendentes são oficiais muito bem preparados, que cumprem suas atribuições com elogiável eficiência, e são, igualmente, respeitados e admirados.

            MAS, e este "mas" é que não nos deixa dormir tranqüilamente, nos pregando peças na calada da noite, fazendo-nos acordar  assuntando e remoendo questionamentos não muito comuns – "mas", dizíamos nós, quem verifica qual a eficiência militar-econômica dos navios construídos? E não quem verifica, mas a quem cabe determinar essa verificação? Estaremos desperdiçando? Gastando mais que o necessário, ou gastando ineficien -temente, prejudicando, por exemplo, a alocação de  verbas para educação, para alimentação, subtraindo-as de nossos compatriotas?

            Acreditando na seriedade das nossas instituições nacionais, teríamos a firme convicção que a série de submarinos decidida obter, foi perfeitamente justifica -da à luz da análise apropriada realizada no processo do estabelecimento de nosso projeto de força.

            Uma vez escolhida uma configura- ção para o projeto de submarino, devería- mos acreditar que sua eficiência em com -bate, deva ter sido, igualmente, otimizada.  Contudo, sobre isso podem pairar algumas dúvidas, devido ao fato de que requisitos operacionais e técnicos devem ser fixados à luz  de uma possível força inimiga, de um provável teatro de operações, enfim, de um provável perfil de missão. E, em face de nossas dimensões e posturas frente às demais nações, isto não parece ser tão fácil definir. De qualquer modo, caberá aos construtores buscar as soluções para atender aos requisitos táticos e técnicos, pois eles devem vir definidos a partir do alto escalão da força armada que vai operar os meios a que se referem.

            Por todas essas razões imaginamos que a Eficiência em Combate (E) pode ser considerada como resolvida e, de certo modo, otimizada. Contudo, o tempo será o grande juiz dessa decisão.

            O problema que paira em nossas dúvidas é o levantamento dos índices de Custos Militar-Econômico (C) – o custo de desenvolvimento, o custo de construção e de operação do submarino, ou de sua série correspondente. Não devemos deixar de mencionar, aqui, o custo de eliminação. Serão considerados adequadamente?

            Embora possamos admitir conhecer a Eficiência em Combate dos nossos submarinos, ou força de submarinos, não cremos que venha sendo dada a mesma importância no levantamento dos índices de custos militar-econômico e, sem conhecê-los, não podemos conhecer a Eficiência Militar-Econômica (∑)do tremendo investimento feito em defesa, uma vez que ∑ =

            onde ∑ é Eficiência Militar-Econômica e  é a relação entre a

Eficiência em Combate e os Custos para obtê-la.

            Sem conhecer esses elementos mencionados não temos, por outro lado, como comparar opções alternativas e novos projetos, e a escolha dos futuros submarinos dar-se-á de forma que não  evitará desperdícios e frustrações futuras.

            Acreditamos que nasce, então, um nicho de oportunidade de aprimoramento da instituição militar. No caso da MB, escolher um meio naval (flutuante, aéreo naval ou de fuzileiros navais) requer profundo conhecimento e compreensão de toda uma sistemática de obtenção, inerente na qual a avaliação das decisões adotadas. No caso que nos serviu de estudo, a obtenção de submarinos, torna-se imprescindível, como ponto de partida para escolha de novos meios de guerra,  a definição do ambiente operacional e do perfil das missões. A partir daí, por meio da fixação de configurações apropriadas, da síntese e definição do que construir, fundamentado em análise de custo-eficácia, ou da eficiência militar-econômica (como referida em alguns países que utilizam intensamente os submarinos como meio de combate), é possível otimizar a solução para um determinado horizonte temporal.

            Se, por outro lado, quisermos ter submarinos para somente satisfazer a esquadra (partindo do princípio que toda esquadra deve ter submarinos), ou a força de submarinos (partindo do princípio que se não os tivermos não poderemos nos preparar adequadamente, o que justifica qualquer projeto de submarino encomendado), ou mesmo para satisfazer a curiosidade acadêmica da construção de submarinos, ingressando no seleto grupo de países que constrói submarinos, não importando qual seja o projeto e que o projeto esteja terminado – então, nada disso acima discutido tem significado.

            Permanece, então, a questão básica à declaração "Fazemos parte ..." – E DAÍ?

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[1] E daí a Fase Conceptual no Ciclo de Vida do Material Militar.