Aviso importante: este artigo versa sobre logística. Se você tem
aversão, ou simplesmente não gosta, não leia.
Realmente o Jones [1] tem razão quando afirma que sua mulher é a melhor
profissional em logística que conhece. Como ele, a melhor profissional
em logística que conheço é a minha mulher, Célia. Outro dia, ela me deu
aula e tanto, que achei perfeitamente adaptável às coisas de Marinha.
Cheguei à cozinha de casa e vi sobre a mesa ovos, farinha de trigo,
fermento, manteiga e leite. Havia mais algumas coisas, mas não me
lembro. Ao deparar-me com aqueles ingredien-tes, exclamei entusiasmado:
- Este bolo é para mim? ao que ela retrucou:
- Olhe bem, isto não é um bolo, ainda. Po-derá se transformar em muitas
coisas, até mes-mo num bolo, mas vai depender de como vou integrar os
ingredientes e processá-los.
Sabia que ela ia fazer um bolo e por isso causou-me surpresa sua
resposta.
- Vendo esses ingredientes, reunidos tão próximos, estou vendo o bolo!
Não tem outra!
Ela então me explicou, com paciência, que não bastava ter os
ingredientes. Mesmo que fos-sem ainda misturados e eu comesse a massa,
pensando que fosse um bolo, não seria um bolo. Era apenas massa de bolo.
- Se no ambiente doméstico você comesse essa massa, poderia até ficar
satisfeito. Digo isso por ver como você raspa a forma em que a mas-sa é
preparada e faz cara de felicidade. Mas pen-se bem: poderia eu oferecer a
massa a amigos que nos viessem visitar? Seria correto você sair por aí
se vangloriando que lá em casa come o melhor bolo do mundo, se só
comesse massa?
Seria um vexame, pensei, não sem concordar que a massa, mesmo sem ter
ido ao forno, era uma delícia. Aliás, há muito tempo esta é minha teoria
- para que levar a massa ao forno se por si só ela já é uma delícia?
Ela continuou:
- Claro, muitas pessoas pensam que basta ter os ingredientes e o livro
de receitas explicando como fazer um bolo, para ter o bolo. Não é bem
assim. Primeiro que tudo, é preciso carinho ...
- Carinho? achei que ela já estava de gozação em cima de mim
- Carinho, pois sem ele você não terá von-tade de fazer o bolo
corretamente. Pode até ir à padaria e comprar um bolo pronto, daqueles
sem gosto, feito com água no lugar do leite, enten-deu? Ou então parte
para confeccioná-lo pelo que se lembra de cór. Como fazem alguns
co-zinheiros, e aí o bolo sola, ou não cresce por dose errada de
fermento, e coisas mais. Nada que impeça de comê-lo, e o guloso sai por
aí dizendo que lá em casa se come o melhor bolo do mundo. Muitos irão
acreditar, são capazes até mesmo de encomendar um bolo, mas aí é que vão
perceber que estão levando gato por lebre.
Sentei-me à mesa da cozinha, para ouvir sua peroração. Ela continuou:
- Conhecimento, é o ingrediente seguinte. Veja bem, mesmo que não seja
eu a fazer o bolo, devo saber como fazê-lo, para acompanhar sua
confecção por nossa cozinheira, de modo a verificar se todos os
procedimentos, materiais e processos são os mais adequados para garantir
a qualidade do produto final. Claro que não preciso ficar na cozinha o
tempo todo, mas de tempos em tempos volto a ela, principalmente nos
momentos mais críticos da confecção do bolo e verifico se os
procedimentos foram corretos. Por exemplo, como foi batida a massa, por
quanto tempo, se a forma foi untada adequadamente, se a temperatura do
forno é a ideal, etc., etc., etc. Em resumo, faço uma auditoria para garantir a
qualidade do bolo final!
- Mas para que tudo isso? Não bastaria mandar a cozinheira seguir a
receita? ela não seria capaz de fazê-lo corretamente?
- Não sei, respondeu minha mulher, acrescentando:
- Se ele fosse profissional bem preparada por meio de cursos e estágios
de treinamento, eu teria toda a confiança. Mais ainda, em se tra-tando de
uma atividade tão complexa como fazer um bolo, se ela fosse certificada,
aí eu nem me preocuparia com seu trabalho. Como nor-malmente isto não
acontece, o normal a esperar é que ela exerça um controle das atividades
que está realizando da melhor forma possível - o que podemos identificar
como controle de qualidade. E por todas essas razões eu continuaria a auditar seu trabalho, para garantir um bolo de qualidade, ao final do
processo.
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Fiquei realmente impressionado como minha mulher era experta (e esperta,
também!).
- Mas, para que tudo isso? É só para fazer um bolo?
- Não, retrucou, é que aqui em casa temos um sistema de
qualidade permanente e seguimos as regras para que tudo dê certo. Sem
esta preocu-pação, a casa viraria um caos, e você não iria parar de
reclamar!
Achei que ela já estava se aborrecendo com meus
questionamentos. Afinal, era só para fazer um bolo ...
- Tem mais, acrescentou ela, sentando-se ao meu lado,
tendo à frente todos os ingredientes do bolo.
- Para fazer um bolo, existe todo um processo de
"engenharia culinária", que deve ser muito bem "gerenciado", e uma
seqüência de "atividades logísticas", o que se não for bem compreendido,
resultará num produto de qualidade no mínimo du-vidosa. Pode até dar
certo uma vez, mas nada garante a próxima.
Achei que já era exagero. Sempre vi fazer bolo, era
coisa simples, e agora minha mulher estava fa-lando de engenharia,
gerência e logística, compli-cando uma coisa tão trivial.
- Parece até que um bolo, para você, é produto de um
sistema complexo! arrematei triunfante, para dar um basta àquele
papo que ia tomando um rumo muito didático.
- Não que seja tão complexo, exclamou ela, mas que o
conjunto de todas os componentes, ações e relacionamentos do lar pode
ser encarado como um sistema, ah, não tenha a menor dúvida. Se o
bolo não sair bom, a retro-alimentação vai funcionar e teremos ou que
trocar de cozinheira, ou mandar regular o fogão, ou comprar ingredientes
de melhor qualidade, enfim, sei lá, o que sei é que teremos que encetar
alguma ação corretiva.
- Você se lembra da buchada de bode? per-guntou-me de
chofre.*
Achei melhor nem responder. Este é um outro episódio
doméstico que em oportunidade melhor pretendo trazer à baila, pois ainda
acho que eu estava com a razão. Mas, por ora, deixa pra lá.
- O bolo, em si, explicou Célia, é um projeto.
Projeto este que deve ser conduzido dentro de um ambiente de
qualidade e segundo uma programação definida. Para fazer o bolo devo
seguir um procedimento de engenharia já consagrado (feliz-mente
alguém, ou alguma entidade estudiosa já o estabeleceu), praticar
atividades consagradas de gerência do projeto (felizmente alguém,
ou alguma entidade estudiosa já as estabeleceu) e gerenciar a
logística apropriadamente (felizmente alguém, ou alguma entidade
estudiosa já a estabeleceu). É claro que não vou pensar em criar um
sistema de manutenção para o bolo, até porque ele não vai durar muito,
mas tenho que providenciar para que ele seja distribuído
apropriadamente.
Minha mulher parou um pouco, tomou fôlego e
completou:
- E além da qualidade e prazo, não devemos esquecer os
custos, os quais procurei otimizar, buscando comprar os ingredientes em
locais que reconhecidamente praticam preços baixos.
Célia já se levantara e estava procedendo a mistura dos
ingredientes. Levava-os, neste exato momento, ao processador, para
garantir a con-sistência e homogeneidade da massa. Aproveitei a
oportunidade para levantar-me e sair de fininho.
Sentei-me em frente à televisão, na sala de estar, mas não consegui
fixar a atenção no programa, pois era um jogo do meu Flamengo que,
coerentemente com seu padrão de mediocridade nos últimos jogos, já
estava perdendo de dois a zero.
Meu pensamento voou para o ambiente naval. Já algum
tempo vinha me perguntando as razões pelas quais o processo de Apoio
Logístico Integrado não era bem entendido e praticado. Acabara de
ler uma publicação oficial que se referia ao "sistema de apoio logístico
integrado", quando na realidade o ALI é um processo para garantir a
otimização do Sistema de Apoio da MB.
As explicações da minha melhor logística aflo-raram em
minha mente. Pude, então, perceber por que vários problemas navais vêm
se perpetuando. As explicações recebidas eram
bastante coerentes e boas para fundamentarem oportunidade de
aprimo-ramento da gestão de material na Marinha.
O Flamengo levou mais um gol. Levantei-me mal humorado,
desliguei a televisão e a mim e fui dormir. Por um outro lado, talvez um
pouco mais aliviado, pois afinal, aqueles problemas de sobressalentes,
de falhas de manutenção, de falta de pessoal, de documentação
incompleta, de insufi-ciência de recursos, entre tantos outros, tinham
solução. C3I neles, pensei! Carinho, Conhecimento, Competência e
Integração!
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